1968: Atores de "Roda Vida" são agredidos, e teatro é depredado
Assim que terminou a apresentação da peça “Roda Vida”, por volta das 23h30 de 18 de julho de 1968, os atores foram surpreendidos por um ataque na sala O Galpão, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo.
Integrantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) começaram a bater nos atores e na equipe do espetáculo. Cerca de 90 homens agiram dentro do teatro, e 20 ficaram fora.
A peça foi escrita por Chico Buarque e recebeu a direção de Zé Celso Martinez Corrêa. Estreou no Rio de Janeiro em janeiro de 1968, com muito sucesso, e em maio veio para São Paulo.
Os invasores estavam armados com cassetete e soco-inglês, relatou a Folha, em uma edição vespertina, publicada no dia seguinte.
“Depredaram as poltronas, quebraram os ‘spots’, instrumentos musicais, e subiram aos camarins onde as atrizes estavam mudando de roupa. Espancaram-nas, tirando-lhes a roupa, e praticaram atos brutais de sevicia, conforme afirmavam atores, testemunhas oculares da violência”, informou a reportagem.
A pancadaria durou cerca de três minutos. O contrarregra José Luiz Araújo sofreu uma fratura na bacia. A atriz Marília Pêra, protagonista da peça, foi forçada a sair pelada de lá.
“Os invasores quebraram tudo o que puderam, bateram em todos os artistas, principalmente no contrarregra José Luiz Araújo e na atriz Marília Pêra, que, depois de várias vezes mordida, foi obrigada a andar nua pela rua”, reportou a Folha da Tarde.
Marília falou sobre esse episódio no livro “Vissi D’Arte” (1999), biografia escrita pelo dramaturgo Flavio de Souza e pela própria atriz.
“Entraram quebrando os espelhos, arrancaram minha roupa, deram socos. Saí correndo, me desviando de socos. No corredor havia mais rapazes, e enquanto fugia eu sentia cassetetes nas costas”, declarou.
A atriz Margot Baird foi outra vítima, conforme publicou a Folha da Tarde. “Depois de despi-la totalmente, dois terroristas torceram os seus seios”, descreveu a reportagem.
O ator Rodrigo Santiago declarou que estava no seu camarim só de paletó, quando houve a invasão. “Corri. Passei por um corredor polonês, de 20 homens com japonas azuis. Levei porrada e torci o tornozelo. Nada grave.”
Durante a tarde daquele dia, um telefonema anônimo foi recebido avisando que um grupo estava planejando um quebra-quebra na peça “Feira Paulista de Opinião”, também encenada no Teatro Ruth Escobar. A ameaça ao teatro se confirmou, mas o alvo foi o outro espetáculo.
No momento do ataque, policiais estavam teatro para tentar aumentar a segurança. Porém, como relatam os jornais, eles nada fizeram para impedir a depredação e as agressões.
O enredo de “Roda Viva” não tinha cunho diretamente político. Contava a história de um artista que ficou famoso, virou um ídolo, se adaptou as demandas da indústria cultural e depois cometeu suicídio.
A peça tinha palavrões e cenas mais fortes. Por exemplo, um fígado cru era dilacerado no palco, como se um ídolo fosse devorado, e o sangue respingava no público.
Nesta época, a ditadura militar estava em seu quarto ano no poder no Brasil, e os militares já haviam começado a endurecer o discurso.
O teatrólogo Plínio Marcos, um dos dirigentes da classe teatral, afirmou que o ataque aos atores de “Roda Viva” serviria para tumultuar ainda mais o país.
“Todo o patriota teme e nós tememos pelos destinos de nossa pátria. Sentimos que há realmente um grupo organizado, forçando a barra, para levar a nação a um regime de terror e violência”, declarou.
No dia seguinte, os atores se apresentaram mesmo feridos e com figurinos rasgados.
Depois do ataque, o censor Mário F. Russomano chegou a questionar se Chico Buarque seria um débil mental por ter escrito a peça.
“Roda Viva” ainda sofreria outro ataque, em Porto Alegre, em outubro de 1968. Segundo Zé Celso, soldados foram ao hotel, agrediram os atores e os colocaram em um ônibus com destino a São Paulo.
O ataque
Em 17 julho de 1993, a Folha publicou a reportagem “Comando de Caça aos Comunistas diz como atacou ‘Roda Viva’ em 68”, assinada pelo jornalista Luís Antônio Giron.
O texto revelou que o advogado João Marcos Flaquer foi quem planejou e comandou a ação.
“O objetivo era realizar uma ação de propaganda para chamar a atenção de autoridades sobre a iminência da luta armada, que visava a instauração de uma ditadura marxista no Brasil”, disse Flaquer.
Dos 110 homens que atuaram naquela noite, 70 eram civis e 40 militares. Fora do teatro, ficaram 20 para facilitar a fuga. Estavam armados com cassetetes, revólveres e metralhadoras.
Eles, que já haviam estudado o espaço do teatro, esperaram o público sair, colocaram uma luva na mão esquerda para identificação e iniciaram o quebra-quebra.
Segundo o grupo, a meta havia sido atingida, pois não houve feridos graves e ação ganhou muita repercussão.
O Ato Institucional número 5 foi decretado em 13 de dezembro de 1968, pelo presidente Arthur da Costa e Silva, e deu poderes extraordinários para o governo, como o de fechar o Congresso, as Assembleias e as Câmaras e o de suspender a garantia de habeas corpus em crimes políticos.
“[O ataque à ‘Roda Viva] antecipou o AI-5 e cortou a via subversiva que o teatro teria seguido”, disse Zé Celso, em maio de 1993.
Em novembro de 2017, a coluna da Mônica Bergamo informou que Zé Celso recebeu a autorização de Chico Buarque para remontar a peça. O diretor passou a buscar financiamento para a produção.