A nova era de gente de bem
O Carnaval já acabou, mas não paro de encontrar por aí gente do mal fantasiada de “gente de bem”. Nunca encontrei tantos na vida. Estão por toda parte. E nem precisa muita convivência para descobrir tantos predicados porque “gente de bem” logo se identifica para não deixar dúvida de que é uma gente de outro nível, não dessas aí, tipo eu, que apenas gostaria que o mundo fosse mais justo, mais igualitário, que houvesse menos preconceito. Gente como eu, tenho aprendido, só serve para encher o saco.
Um dia na manicure ouvi uma representante de “gente de bem” dizer que se mudou para Barra da Tijuca porque o Leblon está acabado. Cheio de gente de rua que, obviamente, não tem nível para conviver com “gente de bem” e só compromete a belezura do bairro, que é coisa de novela. Sabe como é, diz a “gente de bem”: não dá nem para andar na calçada, é mendigo pedindo esmola o dia todo e a noite vira um acampamento. Os porteiros têm que lavar as calçadas todos os dias, fica um cheiro insuportável. Nesse minuto, entra alguém na sala e pergunta se queremos água e café. Peço um uísque, mesmo que seja cedo para isso. Preciso de um anestésico para não gritar.
Eu não tinha reparado que o bairro não estava assim tão bonito como esperado, mas percebi que certamente está mais triste com tanta gente vivendo nas ruas. O que me incomoda é ver famílias inteiras se encolhendo embaixo de papelões, dividindo espaço com ratos, mas achei melhor não falar nada porque deve ser mimimi da minha parte me entristecer pela desgraça de gente que não é “gente do bem”.
Dia desses, numa ponte aérea, um casal gay tentava acalmar os dois filhos, uma menina de uns três anos e um bebê de uns seis meses. Um dos homens, com muita paciência e carinho, embalava o mais novo que chorava sem parar. Não demorou que uma representante de “gente do bem” falasse para o marido: “dois homens com duas crianças. Acham que é fácil cuidar de filho. Se tivessem mãe, isso não aconteceria. Nessas horas você vê que esse discurso de igualdade não serve para nada. Criança precisa de mãe”.
E eu, que não sou “gente do bem”, comecei a sentir uma baita dor de estômago, uma vontade de vomitar, que pensei ser causada pela turbulência do avião, mas era só nojo mesmo dessa gente tão limpinha. E eu, que não tenho capacidade de manter uma samambaia viva, ao ver aquela cena tão cheia de amor, tive certeza de que crianças não precisam de “mãe”, mas de pessoas amorosas e comprometidas em criá-las para que se tornem cidadãos melhores do que essa “gente de bem”. E que alívio que o casal gringo não entendia uma única palavra dita por aquela senhora e que o mundo tem mais gente sensata do que “de bem”. No desembarque, não faltaram pessoas para ajudá-los a tirar as malas do bagageiro e carregar escada abaixo, enquanto os dois se encarregavam dos filhos. Mesmo sem falar inglês tem gente que entende a língua da empatia.
E, para finalizar, devo ser algum tipo de para-raios de “gente de bem”. Brotam do chão para falar coisas inacreditáveis. Na fila do banco, que não tive escapatória, uma senhora que começa a reclamar da soltura do Temer. Pensei, lá vem. E veio mesmo. Em minutos, ela decretou guerra ao Supremo Tribunal Federal, ao presidente da Câmara, ao vice-presidente e, veja só, disse que é a hora de “gente de bem” tomar o controle do país. Então, ela pulou para o capítulo “família acima de tudo” e contou para geral na fila que é casada há 52 anos e que, claro, o marido já teve várias namoradas, mas que ela (nessa hora se enche de orgulho como se fosse contar que foi ela quem descobriu os buracos negros) segurou o casamento porque, né?!, família acima de tudo.
E, antes que eu pudesse sair gritando daquele filme de terror cheio de “gente de bem” ou desse uns tapas (tapas do bem, claro) naquela senhora para ela acordar para a vida, o painel eletrônico chamou minha senha e me trouxe de volta para minha bolha de amor.
Socorro.