Abordagem de política e gênero põe à prova escolas católicas tradicionais
Por que a professora usa tanta roupa vermelha, por que evento sobre gênero, por que não usar cartilha de alfabetização, por que mostrar só um lado da escravidão, por que chamar muçulmano para falar sobre tolerância religiosa?
Todas essas indagações foram feitas recentemente a dirigentes de escolas católicas tradicionais de São Paulo, no momento em que o país vive um debate acirrado em torno da abordagem de gênero e política na sala de aula.
A chamada “guerra cultural” empreendida por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PSL) atinge toda a educação, mas de forma particular as instituições católicas, que enfrentam um mercado cada vez mais competitivo e o que alguns especialistas veem como uma crise de identidade.
“A escola católica tem uma grande contradição”, diz o educador Manoel Alves, que estuda o tema há mais de três décadas. “Há pais os que querem dela tolerância e pluralismo e os que esperam um alinhamento maior aos princípios doutrinários da igreja”, diz.
E, para complicar, nem sempre a interpretação sobre esses princípios é consensual, como mostra caso recente ocorrido no Instituto Educacional Imaculada, em Campinas (SP). Fundada há 67 anos, a escola sofreu uma onda de ataques virtuais após a circulação de um vídeo com uma palestra de um clérigo islâmico, entendida pelos críticos como uma atividade de doutrinação islâmica.
O Imaculada reagiu dizendo que o objetivo era promover a tolerância religiosa, em consonância com o que prega o papa Francisco.
Com mais ou menos estridência, episódios como esses têm se tornado cada vez mais rotineiros. Aliados às mudanças no mercado educacional, têm levado as instituições a se posicionar sobre uma questão: qual o verdadeiro papel de uma escola católica?
Em funcionamento há 71 anos, o Santa Maria, em Interlagos (zona sul de SP), acaba de finalizar um novo projeto pedagógico no qual dá a sua mensagem. O documento, elaborado em conjunto pela direção e pelos professores, coloca como missão do colégio “promover uma educação reflexiva, crítica e democrática, pautada nos valores dos direitos humanos e cristãos”.
O posicionamento é uma resposta a ataques que o colégio enfrenta desde 2017. Eles começaram após a publicação na revista institucional da escola de um texto sobre questões de gênero elaborado pelo coletivo feminista das alunas.
Parte das famílias se indignou com a avaliação de que o Santa Maria estaria promovendo a chamada ideologia de gênero —termo cunhado por religiosos, rejeitado por educadores, sobre debates acerca da construção social do papel do homem e da mulher.
A controvérsia foi tamanha que a equipe da escola achou importante falar com um bispo para esclarecer o que havia ocorrido. “Ele disse ‘eu pessoalmente não tenho dúvida [a respeito da conduta do colégio], mas, para evitar polêmica, tenta não usar a palavra gênero’”, lembra a diretora do Santa Maria, a freira Diane Clay Cundiff, ou sister Diane, como é chamada.
“Nem gênero alimentício?”, ironiza ela ao lembrar da declaração —e de sua reação: “gênero é uma palavra normal, que está no dicionário, e vamos continuar a usar as palavras corretas.” Volta e meia, porém, reclamações ligadas a uma suposta doutrinação reaparecem, segundo ela —prova disso é a queixa sobre a professora que veste vermelho.
Para Diane, parte da culpa pela estridência do momento atual é dos aplicativos de mensagens, que amplificam opiniões sem base factual e criam o que ela chama de um “clima de terror” entre os pais.
Diretora do tradicional Colégio São Luis, Sônia Magalhães também acha que a comunicação instantânea favorece boatos e desinformação.
“Recebemos muitas críticas por coisas que não faziam sentido”, diz. “Por exemplo, que estaríamos promovendo ideologia de gênero para crianças porque um professor de antropologia da USP veio falar com os alunos do ensino médio noturno. Primeiro que não era para alunos de cinco anos, segundo que ele não veio doutrinar, mas informar.”
Para a abordagem de questões polêmicas como essas, o colégio tem algumas regras: as discussões não podem mostrar um só lado, e coletivos dos alunos, como o feminista, só podem se reunir dentro da escola se houver a presença de um educador. Às vezes, chama-se um padre para colocar a visão da igreja.
Apesar do incentivo ao debate, alguns valores são inegociáveis, diz Sônia. “Já recebi uma pessoa que falou: ‘não quero que fale para o meu filho essa coisa de respeito a homossexual’. Sinto muito: aqui vai falar. Não tem nenhuma apologia, mas o respeito vai ser ensinado.”
Primeira mulher a comandar um colégio que faz 152 anos, ela está à frente de um projeto radical de transformação do São Luís, que vai envolver inovações pedagógicas e a mudança dos Jardins para a região do Ibirapuera.
Em linhas gerais, o horário passa a ser integral, alunos ganham maior protagonismo e outras práticas didáticas, como ensino por projetos, se somam às aulas expositivas. A mensalidade deve subir na proporção das horas adicionais.
Segundo a diretora, a modernização ajuda o colégio, que perdeu alunos no início dos anos 2000, a se reposicionar no mercado, mas o motivo da mudança é a própria tradição de inovação da Companhia de Jesus, mantenedora do São Luís. “Mudar é um dever de identidade”, diz.
Para ela, a missão da escola católica é, num paralelo com a linguagem religiosa, promover a boa nova: “comunicar o valor da boa convivência, da boa ciência, da boa cultura”.
No também tradicional Colégio Santa Cruz, em Alto de Pinheiros (zona oeste), os novos tempos também provocaram uma reflexão sobre o caráter religioso da instituição de 67 anos de idade, que tem uma linha mais liberal.
De um lado, alguns pais relataram incômodo com a abordagem de temas de política e gênero. Já outros manifestaram receio de que a escola se tornasse mais catequizante após uma ruptura entre a congregação mantenedora e parte dos membros leigos do conselho de administração.
Para o diretor geral da escola, Fábio Aidar, a melhor resposta à polarização é reafirmar o pluralismo, aliado a valores cristãos como a ação social, que em sua opinião diferenciam os colégios católicos dos demais. Segundo ele, o episódio com a congregação não muda nada em relação a esses princípios.
Ele diz que uma pesquisa feita no ano passado junto aos pais corrobora a postura de reafirmar a identidade do Santa Cruz, em um contexto não só de polarização mas também de mudanças no mercado educacional, com a proliferação de escolas bilíngues, por exemplo. “A maioria quer uma escola atenta a novidades, mas que não perca a formação crítica.”
Vice-presidente da Anec (Associação Nacional de Educação Católica do Brasil), a irmã Adair Sberga diz que o ensino católico tem projeto evangelizador. “Temos a missão de formar bons cidadãos, ajudá-los a descobrir o sentido de suas vidas e dar esperança às novas gerações.” A entidade é ligada à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Em sua opinião, a turbulência do momento atual, embora tenha tido efeito generalizado no setor, não vai abalar instituições tão enraizadas na sociedade brasileira. “Há um grupo de pais que tem às vezes um certo fundamentalismo. É um grupo pequeno, mas faz mais barulho.”
NÚMEROS DAS ESCOLAS CATÓLICAS NO PAÍS
1.400 escolas 110 instituições de ensino superior 2 milhões de alunos (80% na educação básica e 20% na superior)
MARCOS HISTÓRICOS
Século 16: Jesuítas fundam as primeiras escolas do Brasil
Final do século 19/ início do século 20: Escolas católicas têm grande expansão com a instalação de diversas congregações religiosas ao Brasil, especialmente as dedicadas à educação
1937: Constituição permite a destinação de recursos públicos a escolas privadas e confessionais, o que impulsiona as católicas
Década de 1950: Ampliação da rede de ensino público faz colégios católicos deixarem de ser maioria, mas eles ainda formam muitas lideranças
1962-1965: Concílio Vaticano 2º reforça ações sociais da igreja, presentes até hoje no ensino católico
Final da década de 1960 em diante: Expansão do mercado educacional privado e crise vocacional faz algumas escolas católicas fecharem
Anos 2000: Pesquisa feita pela Anamec (associação de escolas católicas) mostra queda de 5,1% no número de colégios do setor entre 1996 e 2004, chegando a total de 1.340. Pevisão era que só restassem os de elite. A Anec, entidade que substituiu a Anamec, diz que hoje o cenário é estável
Fontes: Anec e “Sistema Católico de Educação e Ensino no Brasil”, de Manoel Alves (Revista Diálogo Educacional, 2005)