Alemanha devolve restos de vítimas de genocídio que matou 100 mil na Namíbia

Um dos capítulos mais obscuros da história alemã ainda precisa ser passado a limpo: o genocídio de cerca de 100 mil homens, mulheres e crianças das etnias dos Hereros e Namas, durante o período colonial, na região onde hoje fica a Namíbia. Nesta quarta (29), a Alemanha deu mais um passo nessa direção. Berlim devolveu uma nova leva de restos mortais das vítimas do massacre ao governo de Windhoek.

A entrega foi feita numa igreja histórica no Centro de Berlim, com a presença de autoridades dos dois governos, num esforço diplomático pela reconciliação. Mas, para representantes dos descendentes, ainda é muito pouco. “Queremos um pedido oficial de desculpas e a reparação pelo genocídio, além de poder negociar diretamente com a Alemanha”, disse à RFI Esther Muinjangue, presidente da Fundação Genocídio dos Hereros, da Namíbia.

Esther esteve entre os 50 ativistas e descendentes de vítimas das etnias dos Hereros e Namas, que fizeram uma manifestação na manhã desta quarta-feira diante da igreja onde a cerimônia foi realizada. Deixada de fora da delegação oficial da Namíbia, Esther viajou para Berlim por conta própria.

Ela não foi a única. Vekuii Rukoro, um dos principais líderes dos Hereros, que participa do grupo que abriu um processo num tribunal de Nova York para pedir indenizações ao governo alemão, também foi excluído da lista oficial de convidados, mas também esteve presente na cerimônia, ao lado de Esther.

Para a professora da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e doutora em Sociologia pela USP (Universidade de São Paulo) Tereza Ventura, que há um ano pesquisa o tema na Alemanha para um trabalho sobre ativismo pós-colonial, a principal agenda política dos descendentes dos Hereros e Namas é recuperar parte das terras na região. “Elas foram roubadas pelos alemães, que continuam lá até hoje”, disse à RFI Tereza, que vê paralelos com os quilombolas no Brasil.

“Essas terras foram depois exploradas por mineradoras multinacionais”, diz a professora. O que mostra, segundo Tereza, que a Europa tem um discurso liberal-democrático para consumo interno, mas “continua a se beneficiar da exploração nas pós-colônias do Sul Global”.

Durante a cerimônia desta quarta-feira, a representante do Ministério das Relações Exteriores alemão, Michelle Müntefering, admitiu que o país ainda tem muito a fazer em relação a sua herança colonial. “Queremos ajudar a curar as feridas das atrocidades cometidas pela Alemanha naquela época”.

As discussões entre Alemanha e Namíbia vão continuar, mas sem incluir representantes das duas etnias. A grande briga, segundo o historiador Christian Koop, representante da ONG Berlin Postkolonial, é para saber quem pode negociar em nome dos descendentes e quem pode receber dinheiro de Berlim.

“O governo da Namíbia está quase falido e prioriza a propriedade. Por isso as comunidades querem que o dinheiro da Alemanha vá diretamente para um Fundo a ser administrado por eles”, disse Koop à RFI.

Até agora, Berlim se nega a discutir uma possível reparação pelo genocídio. “Isso poderia abrir um precedente para outros pedidos semelhantes”, explica o historiador. Segundo ele, até hoje 20 mil colonos alemães permanecem em terras tomadas dos Hereros e Namas.

O governo alemão alega que já ajudou a Namíbia contribuindo com milhões de euros para o desenvolvimento do país. “São programas de investimento para gerar emprego e renda, mas esses recursos são destinados ao Estado da Namíbia. Não são discutidos com as comunidades, nem chegam às bases sociais aonde deveriam chegar”, diz Tereza.

Considerado o primeiro genocídio do século passado, o massacre por tropas alemãs dos Hereros e Namas aconteceu entre 1904 e 1908. São tantos os requintes de crueldade que parece ter sido um ensaio para o Holocausto. Há relatos de envenenamento dos poços, confinamento em campos de concentração, trabalhos forçados, estupro, tortura e assassinato de mulheres e crianças.

“O racismo era tal que não havia assimilação possível durante a colonização. Eles simplesmente não eram vistos como seres humanos”, diz Tereza, lembrando que as mulheres foram “obrigadas a dissecar corpos ainda quentes, tirando crânios que eram enviados depois para pesquisas científicas na Alemanha”.

A ideia era comprovar possíveis diferenças raciais, para justificar uma política de hegemonia branca. “Os corpos africanos estão espalhados por vários museus europeus, como França, Bélgica e Inglaterra. Só na Alemanha, há registros de 7 mil restos mortais.”

A África ainda é vista, muitas vezes, como “um continente sem história, sem verniz civilizatório”, diz a professora. Mas ela lembra que “as fronteiras desenhadas pelos europeus —​​e sua herança política, econômica e social—, até hoje provocam a circulação forçada desses povos”. Um capítulo que ainda está longe de acabar.

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