Antes de estrelar anúncio, Kepernick quase perdeu contrato com a Nike
Quase um mês depois que Colin Kaepernick foi divulgado como estrela de uma nova e inovadora campanha publicitária da Nike, o vídeo em que isso foi anunciado já foi visto mais de 80 milhões de vezes, no Twitter, Instagram e YouTube.
Os comerciais e anúncios elevaram Kaepernick a um novo reino de celebridade, e rapidamente se tornaram uma das campanhas mais comentadas e bem-sucedidas dos últimos anos. E permitiram que a Nike, que tem um histórico de campanhas de marketing provocativas, aproveitasse o movimento Resistance de uma maneira que a empresa demorou a perceber possível.
Eles também serviram como um novo veículo para que Kaepernick ganhasse mais visibilidade como uma espécie de empreendedor dos direitos civis, de uma forma que ninguém havia feito no passado, especialmente no esporte. Ele assinou contratos para um livro —que deve ser publicado no ano que vem e será acompanhado por uma turnê de palestras— e para desenvolver uma série de humor.
Mas isso quase não aconteceu. Na metade de 2017, houve um debate intenso na sede da Nike em Beaverton, Oregon, sobre dispensar ou não o controverso quarterback, que estava sem time —e a companhia quase o fez, de acordo com duas pessoas informadas sobre as discussões, que pediram que seus nomes não fossem mencionados porque assinaram acordos de confidencialidade com a Nike.
Quando empresa decidiu apoiar o ex-quarterback do San Francisco 49ers, isso criou o risco de irritar a NFL, a principal liga de futebol americano profissional dos Estados Unidos, de quem a Nike é parceira desde 2012, mas os executivos da companhia decidiram que o risco valia a pena, dada a credibilidade que isso lhe valeria nos mercados jovens urbanos que são seu principal alvo de marketing há muito tempo.
Kaepernick deflagrou um grande debate nacional em 2016, quando começou a se ajoelhar durante a execução do hino nacional antes das partidas de futebol americano, em protesto contra o racismo, a desigualdade social e a brutalidade policial.
Ele deixou o 49ers no final da temporada de 2016 e se tornou free agent [atleta livre para contratação por qualquer equipe], mas os executivos da NFL o viam como radiativo, por conta de seus protestos em campo que, atraíram críticas severas do presidente Donald Trump, e nenhum time quis contratá-lo.
Isso deixou a equipe de marketing esportivo da Nike sem ação. Parecia haver pouco que a empresa pudesse fazer com um atleta causador de controvérsias e que estava fora do esporte.
Antes de a empresa romper relações com Kaepernick, porém, seu principal executivo de comunicações persuadiu os colegas a inverter o curso, devido ao potencial de publicidade negativa. Kaepernick continuaria a fazer parte do grupo de atletas patrocinados pela Nike —ainda que tivesse sido ignorado pela empresa por quase um ano.
Entrevistas com atuais e antigos empregados da Nike, pessoas próximas a Kaepernick, analistas e outros profissionais envolvidos na campanha publicitária revelaram uma reviravolta na posição da Nike, que concluiu que apoiar a cruzada de Kaepernick, por insistência da agência de publicidade que a atende há muito tempo, representava uma decisão de negócios sensata, a despeito do risco de irritar a NFL.
O risco parece ter compensado. Na noite de terça-feira, Mark Parker, presidente-executivo da Nike, disse a analistas de Wall Street, no anúncio de resultados trimestrais da companhia, que a campanha havia criado “engajamento recorde com a marca”.
“Na verdade nos sentimos muito bem e estamos muito orgulhosos do trabalho que temos feito”, disse Parker. “Sabemos que ele ecoou de maneira especialmente forte nos consumidores”.
A campanha também valeu à Nike alguma simpatia, depois de diversas reportagens do The New York Times e de outros veículos, meses atrás, revelando que o ambiente de trabalho da empresa era hostil e abusivo para as mulheres. Em agosto, duas mulheres abriram um processo contra a companhia e solicitaram que ele seja classificado como ação coletiva, se queixando de discriminação salarial e de gênero.
Um analista de Wall Street melhorou sua recomendação quanto às ações da empresa e classificou a campanha como “uma jogada genial”. Em nota a clientes na metade de setembro, Camilo Lyon, analista da Cannacord Genuity, uma empresa de serviços financeiros, escreveu que a Nike havia sido “corajosa” ao assumir uma posição “de apoio a uma questão social quanto à qual poucas (se alguma) empresas se posicionaram recentemente”.
Ele acrescentou que a campanha “falava aos consumidores mais importantes da Nike de uma maneira muito característica da empresa, muito provocativa, que mostra que ela os compreende, e compreende as questões que lhes interessam”. Na semana passada, as ações da Nike atingiram um recorde histórico, cotadas a mais de US$ 85.
KeJuan Wilkins, porta-voz da Nike, reconheceu em email que a empresa havia realizado discussões robustas sobre Kaepernick. “Seria normal que diversas pessoas oferecessem perspectivas diferentes”, escreveu Wilkins. “Respeitando as normas da Nike, todas as decisões finais são tomadas em grupo”.
Kaepernick, que não quis conceder uma entrevista para este artigo, disparou a campanha postando no Twitter uma foto de seu rosto, em branco e preto. Por sobre a foto se via o logotipo da Nike, e as palavras “acredite em alguma coisa. Mesmo que isso signifique sacrificar tudo”.
A imagem foi usada em outdoors em San Francisco e Nova York. No dia seguinte, a Nike lançou um vídeo intitulado “Dream Crazy”, narrado por Kaepernick; ele aparece de modo dramático, no final do vídeo, instando os espectadores a deixar sua marca no mundo.
Mas esse papel de astro representa uma grande virada no relacionamento entre Kaepernick e a Nike. Meses atrás, a decisão da empresa de mantê-lo entre seus atletas patrocinados, mas sem usá-lo em campanhas, levou advogados de Kaepernick a apresentarem queixas de que ela não estava cumprindo suas obrigações contratuais, de acordo com duas pessoas envolvidas nas discussões, que pediram que seus nomes não fossem revelados porque a negociação era confidencial.
O relacionamento da Nike com Kaepernick começou em 2011, quando o 49ers o selecionou no draft da NFL, e prosseguiu ao longo de sua tumultuada passagem pela equipe, que incluiu um Super Bowl, períodos no banco de reservas, lesões e a controvérsia do protesto durante o hino.
Em agosto de 2016, durante uma onda de incidentes nos quais negros americanos desarmados foram atacados a tiros por diversas forças policiais, Kaepernick começou a ouvir o hino nacional sentado, e depois ajoelhado, na lateral do campo, antes das partidas do 49ers. Ele explicou que estava tentando dar voz às pessoas que não a têm.
Não demorou para que colegas de time, jogadores de outros clubes e mesmo atletas de outros esportes se unissem a Kaepernick nos protestos, se ajoelhando, ouvindo o hino de braços dados nas laterais, ou erguendo punhos cerrados em apoio a sua mensagem.
Sabendo que o 49ers planejava cortá-lo, Kaepernick optou por cancelar seu contrato com o clube, no segundo trimestre de 2017. Quando nenhum outro clube o contratou, os principais executivos de marketing da Nike perceberam que não tinham ideia do que fazer com ele: Kaepernick não tinha clube, e por isso a empresa não podia vender uniformes e equipamento esportivo de times contendo o nome dele.
Em outubro, Kaepernick abriu um processo contra a NFL, acusando os proprietários de clubes da liga de conluio para mantê-lo afastado do esporte. Os executivos da equipe de marketing esportivo da Nike não entendiam a situação, e decidiram encerrar o contrato da empresa com ele, de acordo com um ex-empregado da Nike, que pediu que seu nome não fosse mencionado porque assinou um acordo de confidencialidade.
Mas Nigel Powell, o veterano vice-presidente de comunicações da Nike, “ficou furioso” ao saber da decisão, disse o ex-funcionário.
Powell argumentou que a Nike enfrentaria reações adversas na mídia e dos consumidores, se terminasse vista como alinhada à NFL e não a Kaepernick. E a Nike, como a maioria dos fabricantes de roupas e material esportivo, busca desesperadamente atrair o público urbano jovem, que parecia admirar Kaepernick cada vez mais. Os torcedores mais velhos da NFL, majoritariamente brancos e irritados com a liga por conta dos protestos, não são prioridade para essas empresas, de acordo com analistas.
Wilkins, o porta-voz da Nike, se recusou a descrever quem apoiou que lado, no debate sobre Kaepernick entre os executivos da empresa, afirmando apenas que o protocolo da companhia envolve discussões, compartilhamento de opiniões e depois decisão coletiva.
Powell saiu vitorioso, e Kaepernick ficou na Nike, com um contrato que expiraria no começo de 2019. Mas a imagem dele continuou a não ser usada na publicidade da empresa, e seu nome não estava em qualquer peça produzida pela companhia, mesmo que a estatura dele no campo dos direitos civis estivesse crescendo. A revista GQ escolheu Kaepernick como seu Cidadão do Ano, e organizações como a Anistia Internacional e a União Americana pelas Liberdades Civis o homenagearam.
Embora Wilkins tenha afirmado que os contratos de patrocínio não garantem presença do atleta em campanhas ou produtos, os advogados de Kaepernick discordaram. Encorajaram a empresa a começar a cumprir suas obrigações contratuais para com o atleta. A equipe dele também pediu que a renovação do contrato de Kaepernick começasse a ser negociada.
Os contratos de Kaepernick para o livro e programa de TV mostravam que ainda existia mercado para ele. O presidente da divisão norte-americana da Adidas declarou em abril que poderia estar interessado em contratar o ex-quarterback.
Depois de uma série de mensagens e conversas telefônicas ao longo do segundo trimestre, executivos da Nike e representantes de Kaepernick se reuniram em Nova York em 18 de junho. Os executivos da Nike concordaram que ele poderia ter um papel a desempenhar na empresa.
Para a Nike, só restava um problema —o que fazer quanto à NFL.
Em 2012, a Nike assinou contrato para pagar um total reportado em US$ 220 milhões anuais, por cinco anos, pelo direito de colocar seu logotipo nas camisas de todos os times da NFL, e nos produtos oficiais da liga vendidos aos torcedores.
O acordo entre a Nike, uma empresa da costa oeste conhecida por forçar limites, e a NFL, uma organização tradicionalista, foi reformulado, posteriormente. Os dois lados assinaram uma extensão do acordo por 10 anos, em março, mas depois de 2020 a Nike só produzirá os uniformes da NFL usados em campo. Não produzirá mais as mercadorias da NFL vendidas a consumidores. Isso significa que a NFL, que já responde por proporção baixa dos negócios da Nike, perderia ainda mais importância.
Ainda assim, no setor de esportes a NFL tem a reputação de garantir que seus parceiros empresariais façam o que ela quer. A organização há muito pressiona as redes de TV para que cubram o esporte de modo mais positivo, e tem o direito de rejeitar comerciais para exibição durante o Super Bowl.
Por isso, quando a Wieden & Kennedy, agência que atende a Nike há mais de três décadas, instou a empresa, alguns meses atrás, a fazer do jogador mais detestado pela NFL o astro do 30º aniversário da campanha “Just Do It”, a companhia parou para ponderar as possíveis repercussões.
A agência de publicidade, que criou reputação na década de 1980, quando criou comerciais para a Nike estrelados por Michael Jordan e Spike Lee, deixou claro que Kaepernick seria capaz de prover valor real. Já que a NFL estava a caminho de perder importância como parceira, e tendo garantido seu contrato com a liga até 2028, a Nike decidiu aceitar a opinião da agência.
A NFL não quis comentar. A Wieden & Kennedy encaminhou pedidos de comentários à Nike. Mas alguns trabalhadores da agência se provaram menos discretos.
A agência “pressionou pelo uso de Kaepernick como astro do 30º aniversário da campanha Just Do It”, afirmou um designer da agência em setembro, em um site no qual ele mostra seu trabalho. “A Nike concordou. Nós fizemos o trabalho. Colin postou. O pessoal enlouqueceu”.
De acordo com pessoas que trabalharam na campanha, o papel de Kaepernick se desenvolveu rapidamente, com elementos significativos concluídos poucas semanas antes do lançamento.
A Wieden & Kennedy só fechou a imagem editada de Kaepernick, acompanhada por texto, em 27 de agosto, e Lacey Baker, skatista que participa do anúncio, disse que a Nike só a procurou na metade de agosto.
“Eu nem acreditei que eles estivessem mesmo fazendo o anúncio”, disse o fotógrafo Martin Schoeller, responsável pela foto usada no anúncio publicado na revista GQ. “Em geral, que uma empresa faça uma declaração política é o oposto do que se espera no marketing”.
Wilkins, o porta-voz da Nike, disse que não era incomum que os anúncios da empresa passassem por mudanças até logo antes do lançamento.
“O mais importante”, ele disse, “é que usamos Colin porque o consideramos como um dos atletas mais inspiradores de sua geração”,