Bolsonaro tenta reescrever a história, afirma analista argentino
Ao defender que os militares não deram um golpe de Estado em 1964, o presidente Jair Bolsonaro busca manter mobilizada a parte mais fiel de sua base eleitoral, afirma o historiador argentino Carlos Malamud.
Especialista em América Latina e principal pesquisador do think tank espanhol Real Instituto Elcano, ele afirma que o expediente de revisar a história com fins políticos não é exclusivo de Bolsonaro. “Há uma clara reescrita da história no projeto bolivariano. Colocam Simón Bolívar como o grande precursor da integração regional, mesmo que naquela época a ideia de integração regional sequer existisse”, afirma o pesquisador, que esteve na semana passada no Brasil.
Segundo ele, o fenômeno eleitoral que deu a vitória ao discurso radical de Bolsonaro pode se repetir em outros países da região.
Como os demais países da América Latina veem o fenômeno Bolsonaro?
Há um grande acompanhamento do fenômeno Bolsonaro, que mobiliza toda a imprensa do continente. A primeira pergunta que surgiu era saber se algo similar poderia se repetir. Principalmente na Argentina, as pessoas se perguntavam se a centralidade da agenda da segurança era repetível nas eleições de lá. Também se perguntavam se Bolsonaro iria impulsionar algo parecido com uma internacional de direita ou de extrema direita latino-americana. Houve a reunião em Foz do Iguaçu [quando Eduardo Bolsonaro realizou a Cúpula Conservadora das Américas] que foi por esse caminho, mas não sabemos se terá êxito.
O senhor considera o fenômeno Bolsonaro replicável em outros países da América Latina?
Claro que pode ser repetido em outros países. Ninguém está imune contra fenômenos desse tipo, e a experiência recente da América Latina nos indica que acontecimentos similares —mesmo que de espectro político oposto— podem ocorrer. É preciso ter em mente que os mesmos eleitores que hoje apoiam uma opção de esquerda e de extrema esquerda amanhã podem apoiar uma de direita ou de extrema direita. Alguns dos componentes que deram a vitória a Bolsonaro também explicam o triunfo de Andrés Manuel López Obrador no México.
Em que Bolsonaro e López Obrador se parecem?
É evidente que eles estão localizados em polos ideológicos opostos. Mas os dois chegaram ao poder em condições similares. Venceram as eleições num contexto de forte mal-estar social e de protestos contra a corrupção. Ambos manifestam oposição aos partidos tradicionais e se apresentam com discurso populista, tudo isso num contexto comum aos dois países, de crescente descrédito na democracia.
Assim como Bolsonaro, que defendeu uma reinterpretação do golpe de 1964, Obrador se envolveu numa polêmica de revisão da história. Ele pediu que a Espanha se desculpasse por crimes cometidos durante a conquista do México no século 16. Alguma comparação pode ser feita entre esses episódios?
São dinâmicas diferentes. Agora, em ambos os casos esse discurso de revisar o passado tem a ver com motivações de política interna. Os dois têm a necessidade de ter as suas próprias bases mobilizadas. Quando Bolsonaro diz que não houve um golpe, ele está pensando na parte mais fiel do seu eleitorado, aqueles que compartilham essas ideias com ele. López Obrador, quando critica a Conquista espanhola, busca o mesmo. Só que eles buscam setores sociais diferentes.
Por que essa reinterpretação do passado é importante para um político?
É uma necessidade permanente e geral dos políticos. O passado se converte numa arma política. Isso ocorre na América Latina e em outras partes do mundo.
Há uma clara reescrita da história no projeto bolivariano, por exemplo. Colocam Simón Bolívar como o grande precursor da integração regional, mesmo que naquela época a ideia de integração regional sequer existisse. Colocam Bolívar como o grande precursor do socialismo do século 21, outra imagem que não corresponde aos fatos históricos.
Quando Bolsonaro por um lado, e López Obrador pelo outro, tentam reescrever a história, fazem isso em função dos seus próprios objetivos políticos.
Como o senhor vê o desfecho da crise na Venezuela?
Qualquer previsão sobre o país é complicada. Creio que uma intervenção militar está descartada. Quem poderia levar isso adiante são os EUA, e da perspectiva do Pentágono não há nenhum projeto de intervir militarmente. E na América Latina não há capacidade militar de levar adiante um projeto desse tipo. Nem a vontade política. Claro que tudo isso pode mudar em 24 horas.
Se, por exemplo, amanhã o regime Maduro decidir prender Juan Guaidó [líder opositor que se autoproclamou presidente], isso nos conduziria a um cenário diferente. Ou se houver algum tipo de ataque aos interesses dos EUA. A situação é muito dinâmica.
O que sabemos é que estamos diante do princípio do fim do regime de Maduro. Mas não sabemos quando isso vai ocorrer nem como vai ser esse final. Não sabemos se vai ser negociado ou violento.
Carlos Malamud, 67
Historiador e analista político argentino, é pesquisador do Real Instituto Elcano e professor na Universidad Nacional de Educación a Distancia (ambos na Espanha), além de autor de livros sobre a América Latina