Bunge e Santander lançam linha para expansão de soja sem desmatamento no cerrado

A Bunge, o banco Santander Brasil e a organização TNC (The Nature Conservancy) lançaram nesta quarta-feira (29) uma linha de financiamento de US$ 50 milhões (R$ 206 milhões) para estimular a expansão de soja em áreas já degradadas no cerrado do Brasil, o maior exportador global da oleaginosa.

A expectativa é que os primeiros empréstimos do programa, considerado piloto, estejam disponíveis já em setembro, com taxas variando de 6% a 11% ao ano, em dólar. O financiamento será de longo prazo, podendo chegar a até 10 anos.

"É um prazo compatível com a aquisição e transformação de áreas que vão precisar de investimentos para voltar a serem produtivas", afirmou o diretor de agronegócios do Santander Brasil, Carlos Aguiar, durante apresentação do programa na sede da instituição, em São Paulo.

Ao estimular a agricultura em áreas degradadas, cuja vegetação foi desmatada no passado, o programa contribuiria para evitar novos desflorestamentos em uma região que é chave para a produção agrícola do Brasil.

Pelos cálculos da TNC, o cerrado brasileiro tem hoje mais de 25 milhões de hectares de terras que foram desmatadas no passado e que são aptas à expansão da soja.

Do total de recursos oferecidos, 65% serão disponibilizados pelo Santander Brasil, 30% pela Bunge e 5% pela TNC. Caberá principalmente à gigante norte-americana, uma das maiores tradings de grãos com atuação no Brasil, a tarefa de selecionar produtores e acompanhar a alocação do dinheiro para o reparo de áreas degradadas.

"O objetivo do programa não é de custeio, é realmente promover a implantação, a expansão de uma agricultura sustentável. Os agricultores qualificáveis serão aqueles que já têm um histórico com a Bunge", destacou o diretor global de Sustentabilidade da companhia, Michel Santos.

Ele frisou que o financiamento é, por ora, um projeto piloto, sem prazo para ser aplicado em larga escala --neste primeiro momento, não mais que cinco produtores devem contemplados.

"A ideia nossa é poder testar esse conceito. Com esse teste, vamos ter certeza se [o programa] poderá ser expandido".

Bunge, Santander Brasil e TNC trabalham para que os US$ 50 milhões estejam totalmente destinados até junho do próximo ano.

POLÍTICAS PERMISSIVAS

Políticas permissivas de uso da terra e seu preço relativamente baixo ajudaram a catapultar o Brasil ao nível de potência agrícola, o maior exportador de soja, carne bovina e frango do mundo.

O potencial do cerrado também ofuscou o interesse de agricultores e pecuaristas pela região amazônica, cujo aumento do desmatamento provocou um clamor mundial por sua preservação.

Autoridades brasileiras citaram a proteção da vegetação nativa como uma medida crítica para o cumprimento das obrigações do Acordo de Mudanças Climáticas de Paris. Mas cientistas alertam que o cerrado atingiu um ponto de inflexão que pode dificultar os esforços do governo e piorar o aquecimento global.

Ao focar na resolução de um problema, o Brasil acabou criando outro, diz Ane Alencar, diretora científica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o IPAM.

"Esse processo de chamar atenção para o desmatamento na Amazônia fez a indústria do agronegócio se sentir forçada a expandir para o cerrado", afirma.

O peso já pode ser sentido nos recursos hídricos da região. Rios e nascentes estão se enchendo de sedimentos e secando, conforme a vegetação em torno deles desaparece.

Isso por sua vez acaba enfraquecendo as cabeceiras de rios vitais que correm para o resto do país, dizem cientistas. Entre aqueles em perigo está o São Francisco, o mais longo do Brasil fora da região amazônica, onde os níveis estão atingindo mínimas históricas na temporada da seca.

"A retirada da vegetação pode levar um corpo hídrico à extinção", disse Liliana Pena Naval, que é professora de engenharia ambiental na Universidade Federal do Tocantins.

A vida selvagem também está ameaçada, incluindo as raras araras azuis, lobos-guará e onças, que tem o cerrado como sua casa. Também estão a perigo milhares de espécies de plantas, peixes, insetos e outras criaturas que não são encontradas em nenhum outro local do planeta, muitas das quais estão apenas começando a ser estudadas.

"Eu comparo muito com o que representou o incêndio da biblioteca de Alexandria da antiguidade", diz Mercedes Bustamante, ecologista da Universidade de Brasília. "Toda vez que você queima e destrói o cerrado você está perdendo um acumulo de informação evolutiva de milhares de anos que não vai poder ser mais recuperada."

A grande vasta savana que permeia o Centro-Oeste do país --que é a maior da América do Sul e abriga 5% das espécies do planeta-- perdeu mais de 105 mil quilômetros quadrados de mata nativa desde 2008, de acordo com dados do governo.

O número representa 50% a mais que o desmatamento visto no mesmo período na Amazônia, um bioma pelo menos três vezes maior. Considerando o tamanho relativo, o cerrado desaparece quase quatro vezes mais rápido que a floresta amazônica.

Fazendeiros enxergam o desenvolvimento do cerrado como crítico para a segurança alimentar global, e para manter a prosperidade do país. O setor agrícola cresceu impressionantes 13% no ano de 2017, enquanto a economia como um todo quase não se mexeu.

A habilidade para produzir continuadamente novas terras agrícolas de maneira barata deu ao país uma vantagem sobre seus principais rivais, e consolidou seu status como um fornecedor vital de alimentos para o mundo.

"Você imaginou, se não fosse o Brasil, com essa produção que tem, quanto mais fome teria?", disse o produtor Julimar Pansera.

Quando ele adquiriu terras no interior do Brasil sete anos atrás, elas tinham árvores frutíferas, arbustos retorcidos e algumas palmeiras, destoando da típica vegetação rasteira do cerrado.

Ele desmatou a maior parte da mata nativa, botou fogo no terreno e depois disso iniciou o cultivo de soja. Na última década, Pansera e outros na região já desmataram uma área maior que a Coreia do Sul.

REVOLUÇÃO VERDE

Do tamanho aproximado do México, cortando o meio-oeste brasileiro a partir da fronteira com o Paraguai e se esticando em direção ao litoral do Nordeste, o cerrado já viu praticamente a metade de suas matas nativas serem convertidas em fazendas, pastos e áreas urbanas nos últimos 50 anos.

O desmatamento na região entrou em desaceleração desde os anos 2000, quando o boom da soja no Brasil ganhava embalo. Ainda assim, fazendeiros continuam a abrir novas áreas do bioma para cultivos, impulsionados em grande parte pela demanda chinesa por grãos e carnes brasileiros.

O gigante asiático é o principal comprador de soja do Brasil para a engorda de sua produção de suínos e frangos. A China também é uma grande compradora de carne de porco, bovina e de aves para satisfazer as exigências de um mercado consumidor cada vez mais crescente.

O aumento das tensões comerciais entre a China e os Estados Unidos apenas aprofundou essa conexão. As exportações de soja do Brasil para a China subiram 18% em valor nos primeiros sete meses do ano, enquanto compradores chineses cancelaram dezenas de milhões de dólares em contratos com fornecedores norte-americanos.

A tendência é um bom presságio para os produtores na região de fronteira agrícola do Matopiba, nome que inclui as abreviações dos Estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, onde a terra é relativamente barata.

Terras intocadas podem ser adquiridas na região por um preço de US$ 248 (R$ 1.021,41) por acre em média, de acordo com a consultoria de agronegócio Informa Economics IEG FNP, em comparação com a média de US$ 3.080 (R$ 12.685,29) por acre de terra já desmatada nos EUA.

O plantio de soja no Matopiba mais que dobrou na última década.

Pansera, de 50 anos, é parte de uma onda de empreendedores do Sul do Brasil que estão redesenhando a região. Sua educação formal parou no ensino fundamental, mas ele encontrou terra o bastante para atender suas grandes ambições.

Ele agora comanda cerca de 49 quilômetros quadrados de campos de soja cultivados e têm cerca de 20 funcionários fixos em sua folha de pagamento.

A soja de Pansera trará um lucro estimado de cerca de R$ 5 milhões neste ano, valor que será em grande parte reinvestido na fazenda.

Políticas governamentais impulsionaram intencionalmente a agricultura em escala industrial na região. Com escassez de terras para alimentar sua população crescente nos anos 1970, o Brasil focou em sua vasta savana, uma região batizada pelos primeiros exploradores como "cerrado", ou "fechado", por causa de sua vegetação entrelaçada.

Pesquisadores estatais da área agrícola desenvolveram fertilizantes e outros insumos para aprimorar o solo ácido e pobre em nutrientes e criaram variedades de soja que prosperavam nos trópicos.

Assim, a oferta de terra arável explodiu. Em uma década, o Brasil passou de importador de alimentos para exportador líquido chegando à década de 1990 com um peso importante nos mercados internacionais de commodities.

"Agricultura no cerrado para a gente tem isso, fez com que o Brasil mudasse de patamar", afirmou o ministro Blairo Maggi.

Chamado por um tempo de "Rei da Soja", Maggi é um bilionário cuja família comanda uma das maiores operações privadas de soja no mundo, a maior parte dela no cerrado.

O ministro diz que os produtores respeitam os limites permitidos legalmente no desmatamento. A ocupação "racional" do Cerrado ajudou a economia do Brasil, afirma ele.

Fazendeiros emergiram como uma poderosa força política dedicada a manter o interior do país aberto para negócio.

Parlamentares da chamada "bancada ruralista", que compõe mais de 40% do Congresso, lideraram nos últimos anos uma reversão nas leis ambientais do país.

Entre os esforços esteve o abrandamento do Código Florestal de 2012, que estabeleceu os requisitos de preservação de vegetação nativa. A mudança reduziu a possibilidade de multas e sanções para fazendeiros, pecuaristas e madeireiros acusados de desmatamentos ilegais no passado, e facilitou que proprietários de terras pudessem desmatar mais de suas propriedades.

O desmatamento anual na Amazônia no ano passado apresentou alta de 52% ante uma mínima histórica de 2012.

Ainda assim, as proteções ambientais na Amazônia permanecem sendo as mais robustas do Brasil. Fazendeiros da região devem, por lei, preservar 80% de mata nativa em suas terras.

Compradores mundiais de grãos em 2006 também concordaram em parar de comprar soja colhida de novos territórios desmatados nas áreas do bioma amazônico. Como parte de suas obrigações sob o Acordo de Paris, o governo prometeu eliminar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030.

O Brasil não teve a mesma iniciativa para preservar o cerrado, que há muito é visto como um recurso a ser desenvolvido.

É exigido que produtores do cerrado preservem 20% de mata nativa, chegando a 35% em áreas próximas à Amazônia.

Os que não maximizarem o uso de suas extensões correm o risco de terem suas terras declaradas ociosas e sujeitas à redistribuição sob o programa de reforma agrária lançado em 1980, iniciativa destinada a assistir as populações rurais de baixa renda, afirma Evilson Nunes Ramos, coordenador de sustentabilidade do Ministério da Agricultura.

"A ideia que passa para o produtor é que ele não deveria ter preservado, que ele deveria ter desmatado", diz Ramos sobre a diretriz.

Um porta-voz do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, que verifica o uso das terras rurais, diz que o trabalho da agência é garantir "o cumprimento da função social da propriedade".

ÁGUA E VIDA SELVAGEM AMEAÇADAS

Ambientalistas dizem que as planícies cobertas de mata do cerrado não capturam a atenção do público da mesma maneira que a exuberante floresta amazônica o faz.

As pessoas veem o cerrado "como só um mato, só uma vegetação torta e arbustiva", lamenta Ane, do IPAM.

O que muitos não veem, diz, é a conexão entre a carne presente em seus pratos, alimentada pela soja cultivada também aqui, e o declínio de um dos maiores depósitos de carbono do mundo, um baluarte contra o aquecimento global.

As plantas aqui enviam suas raízes para o fundo da terra, para sobreviver às secas sazonais e incêndios florestais, criando uma vasta rede subterrânea que alguns classificam como uma floresta de cabeça para baixo.

A destruição da vegetação da superfície e a consequente morte da vida abaixo da terra liberaram 248 milhões de toneladas de gases de efeito estufa para a atmosfera em 2016, de acordo com estimativas do Observatório do Clima, um grupo ambientalista brasileiro. Isso corresponde a duas vezes e meia a quantidade anual de gases emitidos por todos os carros no país.

As bacias hidrográficas também estão sentindo o efeito.

Em Palmeirante, uma municipalidade rural no Estado do Tocantins, Ronivon Matias de Andrade, que cultiva apenas para sua subsistência, culpa os mega produtores por danificarem uma fonte de água da comunidade.

Vestido com bermudas desbotadas e chinelos, ele mostrava a um visitante os restos do que até recentemente era uma mata cheia de sombra: árvores desenraizadas e terra marcada por trilhos formados por maquinário pesado.

Despida de sua vegetação, o solo arenoso da superfície está invadindo um riacho e adentrando um poço de água doce que abastecia a sua e outras famílias de região. Ele encheu uma mão com a água escura e suja para mostrar.

"Quantos estão acabando desta maneira só neste Estado aqui?", disse Andrade, de 43 anos.

Ambientalistas dizem que riachos desaparecendo como em Palmeirante ameaçam o abastecimento do país. Nascentes aparentemente insignificantes --pequenos córregos, riachos sem nome-- são vitais para afluentes que alimentam alguns dos maiores rios brasileiros.

De 12 dos maiores sistemas hídricos do país, 8 nascem no cerrado. Eles incluem o São Francisco, o quarto maior rio do país, uma vez famoso pela navegação de barcos com rodas de pás, conhecidos como gaiolas.

Ambientalistas dizem que desvios artificiais, incluindo represas agrícolas e hidrelétricas, ajudaram a alterar os níveis de água a tal ponto que grandes partes do rio são agora inavegáveis durante a temporada de seca.

A perda de vegetação nativa também está alterando o microclima da região, dizem ambientalistas. A vegetação reduzida leva a maiores temperaturas terrestres e à perda de umidade, uma receita perfeita para a diminuição da chuva em consequência.

Um estudo conduzido pela Universidade de Brasília associa o desmatamento a uma queda de 8,4% nas precipitações entre 1977 e 2010 no cerrado.

A vida selvagem do bioma também é pressionada enquanto seu habitat encolhe. Mais de 300 espécies que vivem nele são consideradas ameaçadas de extinção, de acordo com o governo.

Entre elas há 44 tipos de "peixes anuais" exclusivos ao cerrado, cujas vidas curtas se iniciam com as chuvas da primavera e terminam com o calor do verão. Cientistas suspeitam que a predominância das estações de seca poderiam estar interrompendo seus delicados ciclos de reprodução.

Outras criaturas, incluindo as emas, entrarão em breve na lista de espécies ameaçadas se nada for feito para reverter este quadro, diz Ricardo Machado, um professor de zoologia na Universidade de Brasília.

Ele diz que os números de pássaros despencaram devido à perda de mata nativa necessária para o acasalamento e o aninhamento das espécies.

Machado teme que plantas únicas do cerrado, insetos e outros animais possam desaparecer antes que cientistas tenham a oportunidade de sequer identificá-los, quanto mais estudá-los.

"É um universo a ser descoberto", diz Machado. "Toda atenção é voltada à Amazônia, ninguém fala pelo cerrado."

RÉDEAS NO 'BOOM' DA SOJA

Mas isso está começando a mudar.

Dezenas de grupos, incluindo o Greenpeace, a World Wildlife Foundation (WWF) e o grupo de pesquisas brasileiro IPAM começaram a promover a proteção do bioma para grandes multinacionais.

Em um documento chamado de Cerrado Manifesto, eles pediram ações imediatas para impedir o desmatamento na região.

Mais de 60 empresas, incluindo McDonalds, Unilever e Walmart, já assinaram o documento até agora. As companhias concordaram em apoiar medidas que eliminariam a perda de vegetação nativa no cerrado de suas cadeias produtivas.

Mas, em contraste com a moratória de soja da Amazônia de 2006, o Cerrado Manifesto não exigiu o comprometimento de seus signatários na suspensão das compras de produtos agrícolas egressos de áreas recentemente desmatadas.

O Walmart e a Unilever dizem estar comprometidos a atingirem zero de desmatamento líquido em suas cadeias produtivas até 2020, o que significa que qualquer destruição em uma região seria compensada por reflorestamento de mata similar em algum outro lugar.

O Walmart diz que todos os seus fornecedores de carne bovina no cerrado são monitorados para garantir que não contribuam com o desmatamento na região. O McDonald's não respondeu ao questionamento.

Separadamente, Louis Dreyfus Company, com sede na Holanda, tornou-se em junho a primeira grande trading de commodities a se comprometer a não comprar mais soja de novas terras desmatadas especificamente no cerrado.

A companhia não ofereceu nenhum cronograma, mas disse que trabalharia para estabelecer "uma data limite realista" para eliminar tais produtos de sua cadeia.

O ex-ministro do Meio-Ambiente brasileiro José Sarney Filho, que recentemente deixou o cargo para concorrer ao Senado, propôs um esforço internacional para compensar proprietários de terras pela preservação de seu habitat natural.

Ele levantou a questão na última Conferência do Clima na Alemanha, em novembro passado, mas a iniciativa ainda não atraiu grandes apoiadores.

Enquanto isso, o fazendeiro Pansera enxerga um grande caminho à frente para seu pedaço de terra no cerrado.

Supervisionando sua colheita no início do ano, Pansera assistiu a duas colheitadeiras passando por fileiras e fileiras de soja. As máquinas retiravam os grãos, cuspindo-os em caminhões vazios que as acompanhavam para receber o produto.

Ele diz que não há futuro sem o crescimento, e que a região fronteiriça de Matopiba está apenas começando. O agricultor tem o plano de plantar um total adicional de 180 hectares de soja na próxima safra, em terras recentemente limpas de mata nativa.

"As áreas que têm ainda potencial para abrir são grandes", diz Pansera. "Vai ser um dos grandes polos do Brasil na agricultura."

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