Camisas de futebol explicam a evolução econômica brasileira
O que o período de maior bonança do Palmeiras tem a ver com o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho? Como a briga entre gigantes de tecnologia da Coreia do Sul ajudou clubes paulistanos a pagarem suas contas? Por que quando a crise aperta bancos e financeiras viram onipresentes nas camisas dos times nacionais?
O histórico do patrocínio principal nos uniformes dos clubes de futebol ajuda a entender os últimos 30 anos da economia brasileira. Expõe como setores cresceram, viveram crises e encolheram.
É o que mostra uma pesquisa inédita realizada pelo Ibope Repucom a pedido da Folha, que analisou os patrocínios nas camisas dos clubes mais presentes na Série A do Brasileiro desde 1980.
“O futebol é o esporte mais popular do país e, historicamente, procurado por diversos setores por diferentes objetivos. Seja para tornar a marca conhecida, aumentar o nível de conhecimento e lembrança ou para reposicionar a marca e alcançar de novos públicos”, afirma José Colagrossi, diretor do Ibope Repucom.
Geração Coca-Cola
Em grave crise financeira, a CBF não teria condições de organizar o Brasileiro de 1987. Para se ter ideia do buraco em que estava a confederação, a Taça Jules Rimet —conquistada na Copa de 1970— chegou a ser penhorada como garantia de dívida com uma gráfica.
A solução foi criar o Clube dos 13 com Atlético-MG, Cruzeiro, Grêmio, Inter, Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco, Corinthians, Palmeiras, São Paulo, Santos e Bahia, equipes que reuniam 85% dos torcedores do país. O grupo organizaria o seu campeonato, batizado de Copa União.
A Coca-Cola se interessou em patrocinar esse novo campeonato. Algumas divergências, porém, ameaçaram a parceria com a empresa.
A ideia inicial proposta pelo Clube dos 13 e que mais despertou interesse da multinacional era que a logomarca da empresa fosse desenhada no centro do gramado de todos os jogos. Celso Grellet, diretor de marketing do São Paulo e do Clube dos 13, foi quem fez a proposta, mas a Fifa vetou.
“O João Havelange e outros não se conformaram com o nosso movimento de libertação dos clubes. E, como presidente da Fifa, proibiu esse tipo de propaganda”, conta Grellet. “Aí tivemos a ideia de que todos os clubes estampariam a marca da Coca por um ano, não só durante a Copa União.”
Em 1987, a marca estava nas camisas de dez clubes. Flamengo e Corinthians, respectivamente com Petrobras e Kalunga, eram exceções.
“O Vicente Matheus [presidente do Corinthians na época] não assinou. Dizia que ‘se era bom para vocês, não era bom para o Corinthians’. Era um sujeito folclórico”, lembra Carlos Miguel Aidar, então presidente do São Paulo e do Clube dos 13.
Houve outro problema. Como o Grêmio iria estampar na sua camisa a logomarca vermelha —cor do maior rival— da multinacional dos EUA?
Presidente do clube gaúcho na época, Paulo Odone, irredutível, alegou que um pontinho vermelho no manto branco, azul e preto era motivo para ser destituído do cargo.
Então executivo da multinacional no Brasil, Jorge Giganti custou em acreditar. Tentou demover a ideia de Odone, mas não conseguiu.
A poucas horas de embarcar para Atlanta, nos Estados Unidos, onde participaria da convenção anual da Coca-Cola, Giganti aceitou o veto gremista à cor vermelha. A logomarca ficou em branco e preto.
Era Parmalat
Nenhum patrocínio de camisa no Brasil teve tanto resultado esportivo e gerou tanta inveja de rivais e controvérsia que o do Palmeiras na década de 1990. No Brasil desde os anos 1970, quando instalou uma fábrica em Minas Gerais, a Parmalat levou 20 anos para ter um plano pesado de investimento e marketing no país.
Ele ocorreu após abertura de capital na Bolsa brasileira, com o desejo de assumir a liderança nas vendas de derivados de leite no Brasil. Antes de namorar com o Palmeiras, o grupo já havia comprado o Parma, na Itália, e patrocinado pilotos de F-1, como Nelson Piquet e Niki Lauda.
Por pouco, Palmeiras e Parmalat não subiriam ao altar. A empresa havia iniciado conversas para patrocinar o Paulista de Jundiaí. O Palmeiras não conseguia ganhar título desde 1976 e sua torcida estava irada. O descrédito e indignação foram tão fortes que a torcida não se conformou nem com o vice-campeonato paulista em 1992.
“Os muros do Palestra estavam pichados, ‘ão, ão, ão, Parmalat é enganação’ ou ‘fora, Parmalat’. Houve muita desconfiança de alguns diretores também”, recorda José Carlos Brunoro, contratado pela Parmalat para tocar a parceria.
Luiz Gonzaga Belluzzo, que viria a ser presidente do Palmeiras, era conselheiro e trabalhava no governo de São Paulo, ao lado de Paulo Nicoli —amigo do presidente da Parmalat, Gianni Grisendi. A dupla conseguiu convencer a empresa a firmar acordo de cogestão com o Palmeiras.
“Eu até brincava que a Parmalat precisava fechar conosco e não com o Paulista, nome de um concorrente na venda de leite”, conta Belluzzo.
“O acordo foi bom para os dois lados. Muitos falam apenas do Palmeiras, mas a Parmalat aumentou seu faturamento de US$ 82 milhões (R$ 720 milhões corrigidos pelo IGP), em 1992, para US$ 1 bilhão (R$ 6,7 bilhões corrigidos pelo IGP), em 2000.”
Antônio Carlos, Roberto Carlos, Edílson e Edmundo chegariam em 1993 para acabar com o jejum de 17 anos sem títulos. Com o dinheiro da multinacional, o clube conquistou 11 troféus em 9 anos.
A parceria teve formato diferente de qualquer outra no período. Não foi, porém, o único caso de empresa de alimentos que usou o futebol para surfar no aumento do consumo.
Outras marcas patrocinaram clubes brasileiros: Bauducco, no Coritiba; Mabel, no Goiás; Cirio, no São Paulo; e Batavo, no Corinthians.
Um estudo da Fundação Getúlio Vargas, de 1997, mostra a relação entre o processo contínuo de urbanização e os avanços da presença da mulher no mercado de trabalho com o crescimento da indústria de alimentos processados na década de 1990. Foi neste período, por exemplo, que a indústria expandiu a oferta do leite UHT, o popular leite de caixinha. Sua participação, no mercado saltou de 4,4% em 1990 para 38% em 1996.
Segundo a ABIA (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), laticínios representava 10% do faturamento da indústria alimentícia em 1985. Doze anos depois, essa participação saltou para 18,6%. A produção de leite cresceu de 14 bilhões de litros para 21 bilhões na década de 1990.
“O brasileiro conseguiu comer mais e melhor em meados dos anos 1990. Na década seguinte comprou aparelho de DVD, celular e financiou carro 0 km. Nos últimos anos, uma boa parte realizou o sonho da casa própria”, resume Paulo Dutra, coordenador do curso de economia da FAAP, sobre as mudanças do perfil de consumo dos brasileiros nas três últimas décadas.
Carona no futebol
Em 1999, um ainda franzino Ronaldinho despontava no Grêmio. Na decisão do título gaúcho daquele ano, a imagem do novato dando um chapéu em Dunga, em fim de carreira no Inter, rodou o mundo.
O logo da Chevrolet estava nas camisas do humilhado ex-capitão da seleção e do exaltado novo craque do Brasil. A multinacional americana patrocinava os dois clubes de Porto Alegre. Um ano depois, em 2000, inaugurava o complexo industrial em Gravataí, no Rio Grande do Sul, em uma área de 363 hectares.
Naquele ano, a Fiat fez a mesma aposta. Fechou com o Atlético-MG e, em 2000, acertou com o Cruzeiro, exibindo sua marca nas duas camisas mais populares de Minas Gerais.
“Houve uma guerra fiscal, onde o governo estadual ofereceu benefícios como terrenos, ou regimes tributários diferenciados para atraírem essas empresas”, afirma Roberto Borghi, professor do Instituto de Economia da Unicamp.
O período entre os anos 1990 e a primeira década do século 21 foi o auge da parceria do setor automotivo com os clubes. Três marcas —Fiat, Chevrolet e Pirelli— estamparam as camisas de oito clubes da Série A.
Nunca o brasileiro comprou tanto carro. Segundo a Anfavea (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores), o Brasil possuía 1 carro para cada 8 habitantes em 1999. Em 2010, era 1 para cada 6 habitantes.
Segundo associação, a primeira década do século 21 começ ou com 1,6 milhão de carros licenciados e terminou com 3,5 milhões no Brasil.
Rivalidade coreana
Rivais históricos, Corinthians, Palmeiras e São Paulo foram personagens de uma disputa que começou do outro lado do mundo. As camisas dos maiores clubes paulistanos foram usadas, na primeira década do século, em uma “guerra” por um mercado bilionário.
Neste período, celulares e computadores se popularizavam no Brasil e as primeiras TVs de plasma e LCD começavam a aparecer.
As vendas de desktops e notebook, por exemplo, saltaram de 2,2 milhões em 1999 para 14 milhões em 2010, segundo a IDC, empresa de pesquisa de mercado. LG e Samsung investiram para aproveitar esse crescimento.
“Essas marcas começam a entrar no Brasil. Como são desconhecidas, fazem uma campanha agressiva de marketing e em pouco tempo tomam lugar de marcas locais, como CCE e Gradiente”, afirma Paulo Dutra.
Para isso, usaram as camisas dos clubes de maior torcida do estado mais rico do país. O São Paulo puxou a fila, em 2001, ao trocar a Motorola pela LG. A parceria foi uma das mais longas do clube. Só acabou em 2009. No período, o São Paulo acumulou conquistas como a Libertadores e o Mundial, de 2005, e os Brasileiros, em 2006, 2007 e 2008.
Em 2007, o Brasil se tornou segundo maior mercado de celular da marca com 10 milhões de aparelhos vendidos.
A Samsung reagiu e estampou as camisas do Corinthians entre 2005 e 2007. Depois, em 2009, apareceu na camisa do rival Palmeiras.
Corrida para os bancos
Após estamparem marcas de alimentação, automóveis e eletroeletrônicos, as camisas de futebol foram dominadas por bancos nos últimos anos. Todos os 18 clubes que mais estiveram na Série A do Brasileiro desde 1987 foram patrocinados, em algum momento, por instituições financeiras.
“Antes os bancos fugiam do futebol por causa do fanatismo, havia preocupação de patrocinar um clube e sofrer rejeição de rivais. Isso mudou”, afirma Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor da Anefac (Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade).
“Os bancos procuraram os clubes para popularizar o crédito consignado. Hoje, os bancos digitais, numa briga intensa pelo cliente, querem estar nas camisas”, completa.
No Brasileiro de 2011, o BMG protagonizou um feito que não ocorria desde o domínio da Coca-Cola. A marca estava na camisa de 11 times.
O dono do banco, Ricardo Annes Guimarães, presidiu o Atlético-MG entre 2001 e 2006. Quando questionado sobre o patrocínio ao Cruzeiro, respondeu: “banco não torce, faz negócio e quer visibilidade”.
O BMG estava na camisa do Santos de Neymar e na do Atlético-MG de Ronaldinho, campeão da Libertadores.
Era um momento em que a economia do Brasil crescia, com expansão do consumo. O banco surfava na maré boa com sucesso na sua operação de crédito consignado.
Em 2010, teve o seu melhor resultado na história, com lucro líquido de R$ 986 milhões (em valores corrigidos).
O domínio do banco mineiro foi batido pela Caixa Econômica Federal. A estatal passou a investir forte no futebol em 2012. A supremacia da Caixa perdurou até o final de 2018.
Marcou um período de recessão na economia, quando empresas deixaram de investir no futebol e o patrocínio estatal foi a saída os clubes.
A Caixa chegou a patrocinar 25 clubes das séries A e B do Brasileiro. Em 2018, por exemplo, investiu R$ 191 milhões em patrocínios no futebol.
“É possível fazer coisas cem vezes melhores com menos recursos do que gastar com publicidade em times de futebol”, avisou o ministro da Economia, Paulo Guedes, em janeiro deste ano. Dias depois, a Caixa não renovou contrato com as duas dezenas de equipes que patrocinava.
Sem a estatal, bancos privados e digitais abocanharam o mercado das camisas.
Corinthians, Atlético-MG e Vasco voltaram a ser patrocinados pelo BMG. Na crise, porém, os valores caíram e os clubes passaram a apostar em parcerias e serviços. O banco colocou à disposição dos torcedores aplicativo ligados aos clubes, recebem bônus de cada transação.
“A saída da Caixa oferece tanto um desafio quanto uma oportunidade para os clubes de aprimorarem suas identidades, valorizarem o engajamento de suas torcidas e abrindo novos modelos de negócios”, avalia Colagrossi.
O domínio dos bancos e financeiras no futebol coincide com a bonança do setor. O lucro líquido das instituições financeiras (sem considerar inflação) foi de R$ 98,5 bilhões em 2018, maior nível da história conforme o Relatório de Estabilidade Financeira de abril do Banco Central —o levantamento leva em consideração valores desde a implantação do Plano Real.