Campanha pró-aborto na Argentina revela tensões entre governo e Igreja
Neste fim de semana, as missas convocaram os fieis a se manifestarem publicamente. E ao longo da semana, manifestações pró-vida terão o apoio da Igreja. Por trás dessa corrida contra o aborto, há uma tensão ainda maior: a do papa contra o governo do presidente Mauricio Macri. O aborto coloca a Argentina em rota de colisão com o Vaticano, mas também revela os erros políticos do papa na sua própria terra.
Se até o dia 14 de junho, quando a Câmara de Deputados deu meia sanção, a Igreja argentina e o Papa ficaram em segundo plano nesse debate pelo aborto, agora, na reta final, tentam recuperar o terreno. A Igreja não organiza manifestações, mas, em nota oficial, anunciou que apoia e até que encoraja ações de organizações civis a favor da vida e contra o aborto.
Neste domingo (29), os sacerdotes celebraram a Missa pela Vida e convocaram os fieis a se manifestarem publicamente contra o aborto. Muitos veem nessas homílias uma ordem direta do Papa. Na quarta-feira (1º), haverá manifestações em frente ao Congresso e, no próximo sábado (4), será feita uma concentração grande de movimentos pró-vida, em sintonia com a mensagem do papa de se pronunciar em defesa de toda vida humana.
Marcha de apoio
Nesta segunda-feira (30), às 19 horas, haverá uma marcha em frente à residência presidencial. Isso mostra como o governo argentino e a Igreja vivem um momento de máxima tensão. O presidente Maurício Macri autorizou o debate, orientando os legisladores governistas a tratarem do assunto. Macri se diz contra o aborto e a favor da vida, mas deixou os seus legisladores livres de qualquer pressão para decidirem.
A Igreja, além de criticar o presidente Macri por abrir essa porta, desconfia que o governo, na verdade, agiu a favor do aborto na votação final, quando viu que a iniciativa seria derrotada. Até horas antes da votação na Câmara de Deputados, a legalização não tinha maioria, mas três deputados governistas mudaram de opinião naquela mesma noite.
Nos bastidores da disputa, membros do governo admitem a tensão com o papa. A ex-senadora María Eugenia Estenssoro disse que o papa declarou a guerra política ao governo Macri por ter aberto essa porta, a mais sensível de todas para a Igreja.
Membros da própria coligação governista e analistas políticos afirmam que Macri só habilitou o debate porque sabia que o aborto seria derrotado na Câmara de Deputados.
E a Igreja também acreditou nessa premissa que se mostrou errônea. Esse foi um dos erros do papa. Outro erro foi nunca ter vindo à Argentina, sua terra natal, e ter mantido uma fria distância com o presidente Mauricio Macri.
Papa nunca visitou a Argentina
O Papa veio quatro vezes à América do Sul, mas nunca fez uma visita ao seu próprio país. É verdade que recebeu o presidente Mauricio Macri no Vaticano duas vezes, mas se manteve frio e sério enquanto recebia a oposição de forma sorridente.
Os analistas acreditam que essa distância do Papa permitiu o debate pelo aborto. Se Francisco tivesse sido mais próximo, talvez nem Macri tivesse a iniciativa do debate nem os legisladores tivessem a facilidade de defender a causa.
Se o aborto for aprovado, o Papa sofrerá uma derrota política. Na sua cruzada cultural contra o liberalismo e a favor de projetar a Igreja católica no mundo, o Papa sofreu uma derrota com a legalização do aborto na Irlanda e agora pode sofrer outra na sua terra natal. E a Argentina ainda pode ser a primeira peça de um debate regional, justamente quando a Igreja tem um Papa sul-americano.
Eleições em Buenos Aires
Em 2015, a Igreja teve papel fundamental nas eleições na província de Buenos Aires que concentra 40% dos votos do país. Agora, esse papel pode se reverter contra o governo nas eleições do ano que vem.
Por isso, a atual governadora Maria Eugenia Vidal mostrou-se contra o aborto assim que os sacerdotes endureceram o discurso. Semanas atrás, a governadora esteve com o Papa no Vaticano e teria ouvido duras críticas do Pontífice.
Pela primeira vez na história, existe um Papa argentino. E quando isso poderia supor uma sintonia favorável a ambos, a relação entre o Vaticano e o governo é péssima e dificilmente será revertida. Assim, politicamente, perdem os dois lados.