Caos permanente na Líbia alerta para riscos de intervenção na Venezuela
A retomada da violência na Líbia ao longo da última semana reflete a situação caótica em que o país mergulhou após a deposição do ditador Muammar Gaddafi em 2011, facilitada por uma intervenção da Otan (aliança militar ocidental).
Na quinta-feira (4), o general rebelde Khalifa Haftar anunciou uma grande ofensiva sobre a capital, Trípoli, em um desafio ao governo liderado por Fayez al-Sarraj, que tem o respaldo da ONU (Organização das Nações Unidas).
Em um momento em que as potências mundiais voltam a debater a possibilidade de uma ação militar em outro país rico em petróleo, a Venezuela, a derrocada do país norte-africano traz uma lição importante: nenhuma crise humanitária é tão ruim que não possa piorar.
Ocorrida em meio aos tumultos da Primavera Árabe, a intervenção na Líbia visava a proteger a população civil de uma ofensiva das tropas de Gaddafi. A ação foi encabeçada pela França e contou com o aval do Conselho de Segurança da ONU.
O reforço das tropas da Otan contribuiu decisivamente para a derrubada do regime de Gaddafi. O ditador líbio, que chegou ao poder em 1969 prometendo libertar seu país das amarras do imperialismo, passou seus últimos dias foragido, até ser capturado e assassinado por insurgentes.
Os arquitetos da intervenção na Líbia –em particular o então presidente francês, Nicolas Sarkozy– diziam atender aos anseios legítimos da população por democracia. Mas o que sucedeu foi um estado permanente de guerra civil, com a presença de milícias tribais, grupos terroristas e redes de tráfico de pessoas.
Agora, o pretexto de derrotar um regime autoritário para socorrer uma população em apuros volta a ser apresentado como justificativa para uma intervenção na Venezuela. O presidente americano, Donald Trump, insiste que “todas as opções estão na mesa” para resolver a crise no país sul-americano.
Nesta segunda-feira (8), o vice-presidente Hamilton Mourão se reuniu com seu homólogo americano, Mike Pence, e descartou uma intervenção liderada pelos EUA na Venezuela. Mais cedo, o presidente Jair Bolsonaro havia dito que consultaria o Conselho de Segurança Nacional e o Congresso sobre a participação de tropas brasileiras em uma eventual invasão americana no país vizinho.
Assim como Gaddafi fazia na Líbia, o ditador Nicolás Maduro faz da truculência uma marca de seu governo. Desde que o líder chavista assumiu o poder, em 2013, o país viu a economia encolher e as liberdades democráticas serem pouco a pouco tolhidas.
Mas os riscos humanitários e militares de uma invasão na Venezuela são maiores do que havia na Líbia. O nosso vizinho tem população de 32 milhões, cinco vezes maior que a do país norte-africano. De acordo com a ONU, 3,4 milhões de venezuelanos já fugiram do país, número que deve crescer em caso de conflagração.
“Mesmo que uma intervenção militar começasse bem, as forças dos EUA provavelmente se veriam atoladas no trabalho complicado de manter a paz e reconstruir as instituições durante os próximos anos”, escreveu o analista Frank O. Mora em artigo de março na revista americana Foreign Affairs.
Mora estima que uma ofensiva terrestre necessitaria de pelo menos 150 mil soldados. Em contraste, o regime de Maduro conta com 160 mil militares, além de 100 mil membros de grupos paramilitares.
Para complicar a situação, o regime venezuelano tem apoio militar da Rússia. Uma intervenção poderia dar lugar a um conflito por procuração prolongado entre Washington e Moscou.
Na Líbia, o apoio de potências estrangeiras a lados opostos do conflito só faz prolongar o sofrimento da população. Na contramão dos esforços de pacificação da ONU, as forças rebeldes de Haftar receberam suporte da França, do Egito e dos Emirados Árabes Unidos, que viram na fragmentação da Líbia uma oportunidade para fazer avançar seus interesses políticos –além dos lucros provenientes de acordos para extração de petróleo.
Aqueles que defendem o uso da força na Venezuela fariam bem em olhar para o que sobrou da Líbia após a intervenção desastrada da Otan. Se o objetivo é proteger a população venezuelana e restaurar a democracia, uma invasão não parece ser a melhor saída.