Capitalistas põem capitalismo no divã
Era uma vez um tempo em que os velhos comunistas, a cada crise do capitalismo, gritavam, à beira de um orgasmo múltiplo: é a crise final do capitalismo. Aí, veio a crise final do comunismo, sepultado sem pena nem glória sob os escombros do Muro de Berlim, e eis que, surpresa das surpresas, quem grita que está em curso uma crise, talvez final, do capitalismo são alguns dos mais reluzentes exemplares da fauna capitalista.
É o que relata uma das grandes bíblias do capitalismo, o Financial Times, na sua edição desta segunda-feira (22).
Tome-se o caso de Ray Dalio, 69 anos, que abraçou o capitalismo precocemente (aos 12 anos) e cuja empresa, a Bridgewater Associates, não só é o maior hedge fund do mundo, como vale algo que 99,9% dos mortais comuns jamais chegarão a ver passar por perto (US$ 17 bilhões, correspondentes a R$ 66 bilhões). Em caudaloso artigo, Dalio diz que o capitalismo deve “evoluir ou morrer".
É ou não é a insinuação da crise final do capitalismo?
A receita de Dalio para o capitalismo evoluir, em vez de morrer, é aumentar a taxação no topo da pirâmide social —ou seja, aquilo que a esquerda cansou de pedir.
Outra grande fortuna (Jamie Dimon, que, no só no ano passado, ganhou US$ 30 milhões ou R$ 117 milhões, como executivo-chefe da JPMorgan Chase), escreveu texto ainda mais caudaloso para dizer que, por mais que o capitalismo tenha tirado da pobreza bilhões de pessoas, “não dá para dizer que o capitalismo não tem defeitos, que ele não está deixando gente para trás e que ele não deve ser aperfeiçoado".
Dimon é outro que prega maior taxação sobre os ricos para corrigir os defeitos que ele agora enxerga no capitalismo.
Dimon demorou para pedir aperfeiçoamentos no capitalismo. Ele costuma ser uma das estrelas do fórum de Davos, o convescote anual de celebração do capitalismo. Davos, virava e mexia, deitava o capitalismo no divã, aliás, título de um texto meu sobre o encontro de 2011.
Já naquele momento, Robert Samuelson, respeitado economista, escrevia que o capitalismo estava sob sítio.
Então como agora, a desigualdade era o fantasma a assombrar o capitalismo. Zhu Min, que foi vice-presidente do Banco Central chinês até 2010, quando passou a ser conselheiro especial do FMI, já dizia que “a desigualdade é o mais sério tema individual a enfrentar".
Pôs números na sua tese: até a crise de 1929, 1% dos norte-americanos ficavam com 48% da riqueza, porcentagem que caiu para 28% em 1968, mas voltou aos 48% na crise do período 2008/09.
Coube a um sindicalista apresentar um número ainda mais impressionante: "Nos últimos dez anos, os salários perderam para os lucros dez pontos percentuais de sua participação na renda nacional", disparou John Evans, secretário-geral do Comitê Assessor para os Sindicatos da OCDE, o clubão dos países mais ricos do mundo.
Que, em 2019, a desigualdade, que era tema da esquerda, passe a frequentar o léxico dos executivos, dá uma dimensão da crise do capitalismo.
Não creio que é a tal crise final nem acredito que, do divã em que o capitalismo volta a se deitar, vá sair uma cura mágica (nem existe, aliás). Na verdade, o que incomoda os executivos “são os dados que mostram que pessoas mais jovens estão cada vez mais confortáveis com o socialismo como um meio de organizar a economia", disse ao Financial Times Darren Walker, presidente da Fundação Ford.
O jornal britânico lembra que pesquisa Gallup de 2018 mostrou que a porcentagem de jovens americanos de 18 a 29 anos que tem uma visão positiva do socialismo manteve-se estável em 51%, ao passo que a opinião positiva sobre o capitalismo caiu de 68% para 45% desde 2010.
Claro que socialismo é uma palavra que permite muitas variantes, desde o fracassado socialismo real dos países comunistas até o da bem sucedida social-democracia dos países nórdicos. Não sei bem a que socialismo se referem os jovens americanos que se sentem confortáveis com o conceito.
Como tudo no Brasil chega atrasado, pode acontecer que a revolução capitalista que se pretende fazer no Brasil esteja sendo ensaiada tarde demais, no momento em que o capitalismo entra em crise existencial no país em que ele era icônico até ontem.