Carta de um Crusoé sem Sexta-Feira
Tenho a impressão que João Pereira Coutinho, esse notável colunista da Folha, diagnosticou com precisão, em sua coluna desta terça-feira (30), o mal que consome muitas almas neste Brasil:
”Se você é um democrata liberal, esteja preparado: o seu destino é nunca ser compreendido por quem prefere habitar um dos extremos do debate", escreveu Coutinho, com quem sempre aprendo, principalmente nas muitas vezes em que discordo de seus textos.
Como me acho um ”democrata liberal” em permanente processo de aprendizado, vinha me sentindo um Robinson Crusoé sem Sexta-Feira.
Ou seja, um náufrago nesse ambiente de ódios e de certezas absolutas de um lado e de outro, quando eu só tenho dúvidas. Coutinho curou minha alma também nesse ponto ao escrever que "o macaco humano quer respostas simples, certezas absolutas e a destruição de quem não pensa como ele".
O alívio íntimo não impede, de qualquer modo, que o democrata liberal que insiste em se aninhar na alma continue incomodado com o avanço contínuo, mundo afora, dos chamados democratas iliberais ou contraliberais (é correto chamar esse povo de democrata, Coutinho?).
Steve Bannon, na entrevista que a sempre brilhante Patrícia Campos Mello fez com ele na semana passada, usou um novo rótulo para essa turma: chamou-os de "populistas nacionalistas".
Nada contra populista, desde que seja o político que entenda os desejos da população e se proponha honestamente a atendê-los. Tudo contra, no entanto, os populistas que apenas usam o apelo popular para chegar e/ou se manter no poder.
Ainda mais que os ”populistas nacionalistas” que Bannon, o ideólogo da ultradireita, mencionou são todos de índole autoritária, casos de Jair Bolsonaro, do húngaro Viktor Orbán, do italiano Matteo Salvini e, claro, de Donald Trump.
Curioso é que Bannon contrapõe esse povo ao que chama de ”partido de Davos, uma elite financeira, cultural, científica, corporativa".
Curioso porque, antes, era a esquerda que acusava a turma de Davos de ser uma elite que conspirava, todo janeiro, contra o tal de povo. Como jornalista que cobre os encontros de Davos há 25 anos, escrevi mais de uma vez que, se há uma conspiração contra o povo, ela não se dá nas reuniões do Fórum Econômico Mundial, que não passam de grandes simpósios de troca de ideias e informações.
É a reunião da elite? Claro que é. Mas não é um rolo compressor de um ideário qualquer. Tanto que, nesses anos todos, por lá passaram Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, para ficar só nos governantes brasileiros recentes.
Disseram o que quiseram. Passou até um ministro cubano, Carlos Lage, depois defenestrado. Passou um líder sindical como John Sweeney, dirigente da poderosa central AFL/CIO, que, aliás, desancou as políticas ditas neoliberais do então presidente Bill Clinton.
Passaram e dialogaram o israelense Shimon Peres e o palestino Iasser Arafat, aliás tratado pela elite de Davos como pop star. Passaram igualmente o iliberal Recep Tayyp Erdogan e até o atual presidente do Irã, Hassan Rowani, que não é nem democrata nem muito menos liberal. Os chineses, então, são presença constante e numerosa.
Sem contar um punhado de ONGs das mais diferentes características, que, no mais das vezes, funcionam como vigilantes dos governantes, quaisquer que sejam.
Enfim, desfila por Davos, ano após ano, todo o estoque de ideias disponíveis no planeta. Desprezá-lo, como o faz Bannon, é, de certa forma, repetir a famosa frase atribuída ao general franquista José Millán-Astray, durante polêmica na Universidade de Salamanca com o poeta e filósofo Miguel de Unamuno: ”Muera la inteligencia; Viva la muerte".