Christiane Jatahy colhe relato de refugiados para adaptar clássico grego
Entre camelos, ovelhas e um cavalo, no velho estábulo que corta a entrada de um campo de refugiados sírios no leste do Líbano, uma história de 3.000 anos atrás volta a ser contada.
Ulisses, o protagonista da “Odisseia”, é encarnado ora por um ator que teme a capitulação do teatro diante da febre de super-heróis, ora por outro que se viu forçado a largar o palco para ganhar a vida
dublando novelas turcas.
Já Circe e Penélope, duas das âncoras femininas na infindável viagem do rei de Ítaca, são defendidas por uma só atriz, jovem franzina que faz figuração em clipes e “bicos” como diretora de arte e figurinista, enquanto se queixa da resiliência dos “testes do sofá” no meio artístico.
Como os habitantes do campo em que se encontram, os três são sírios deslocados pela guerra civil em seu país, que já dura sete anos. Como a esquadra de marinheiros do clássico de Homero, querem voltar para casa, apesar das feridas que levam, do cansaço e do rastro de destruição que contam encontrar.
A pátria que já não existe, mas que se quer obstinadamente alcançar ainda assim, é a imagem-síntese de
“Nossa Odisseia – O Agora que Demora”, da diretora de teatro e cineasta carioca Christiane Jatahy, 51.
Acompanhei por cinco dias o périplo libanês dela e de sua equipe, completada pelo diretor de fotografia Paulo Camacho e pelo produtor Thomas Walgrave, além de profissionais de apoio local.
“O Agora” é a segunda parte de um projeto de adaptação do clássico grego, aberto neste ano com “Ítaca”, peça em que o foco recaía sobre a espera estoica de Penélope e as tentações e impulsos que, ao soprar sobre a frota de Odisseu, tiravam-na da rota de casa.
O novo espetáculo estreia em maio do ano que vem em São Paulo, uma coprodução do Sesc com o Teatro Nacional de Bruxelas e uma série de outras instituições europeias.
Aqui, a encenadora, que já assinou versões de Tchékhov, Shakespeare e Strindberg, volta a fundir teatro e cinema. A proposta é que o material fílmico seja “remixado” em cada teatro por atores locais, a base de comentários, repetições, adendos —o presente cênico ressignificando o passado granulado.
A superposição do enredo original ao estado de coisas atual é outro traço que filia “O Agora” à “escola Jatahy”.
Os refugiados que faziam aparições em Ítaca assumem a dianteira na conclusão do díptico, enunciando odisseias contemporâneas que têm como cenário Palestina, Líbano, Grécia, África do Sul e, cais derradeiro, Brasil.
No Líbano, destino desta viagem, as Nações Unidas contabilizam 1 milhão de refugiados sírios. Há outras centenas de milhares que passam ao largo da estatística, mas todos esperam a chance de voltar a suas Ítacas.
Alguns gravaram testemunhos para o filme-peça, assim como o trio de intérpretes de fragmentos da Odisseia que teimam em não envelhecer. Os registros documental e ficcional seguirão viagem juntos em cada escala do itinerário de Jatahy e sua companhia.
“A ideia é que somos todos refugiados de alguma forma, seja por nossa história familiar, seja pelo status atual”, diz a diretora. “Refugiado não é algo exótico, distante.”
Leia a seguir um diário da viagem da trupe pelo Líbano.
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DIA 1 No começo da tarde, deixamos a paisagem de hotéis, restaurantes e torres residenciais faraônicas do distrito ocidentalizado de Raouche, à beira do Mediterrâneo, rumo ao campo de refugiados de Shatila, no sul da capital libanesa, um cenário de becos, vielas, lama e carestia generalizada que lembra muito o de uma favela, com o acréscimo de retratos de líderes de milícias islâmicas envoltos em aura glorificante a cada dois passos.
Estabelecido em 1949 para abrigar provisoriamente palestinos deslocados pela então recente criação do Estado de Israel, o perímetro de meio quilômetro quadrado foi palco de um massacre de palestinos e xiitas libaneses em 1982, um episódio-chave da guerra civil que destroçou o país entre 1975 e 1990.
Hoje, os palestinos representam só um quarto da população local. Foram largamente ultrapassados pelos sírios, em fuga desde 2011 de sua própria guerra civil. O total de habitantes antes desse afluxo maciço estava na casa dos 10 mil. Agora, fala-se em até 30 mil moradores.
Abed al-Aziz, 55, costura as duas pontas da ocupação do campo. Tem pais naturais de Nazaré (em Israel, mas de demografia predominantemente árabe), porém nasceu e foi criado na Síria. Veterano de guerras sem nunca ter ido ao front, divide-se há anos entre o Líbano e a Alemanha, onde moram suas filhas.
No campo, dirige a companhia de teatro de bonecos One Hand Puppet, misto de ateliê artístico, polo de reforço pedagógico e janela para o mundo. O projeto, criado em 2011, ocupa um andar em um prédio decrépito e chegou a contemplar 150 crianças e jovens; a dificuldade de conseguir financiamento reduziu o alcance a algumas dezenas deles.
Nas paredes da sede, bonecos em escala humana trajam vestidos de estampa exuberante e jaquetas punks. Há também tipos não realistas, que lembram ciclopes (os gigantes mitológicos de um só olho, presentes na “Odisseia” de Homero), escapadela para o universo fantástico de uma molecada proibida de explorar o mundo real além-campo.
Menos de um quinto das famílias de refugiados sírios estão em situação completamente regular no Líbano, segundo as Nações Unidas, muito por causa de entraves burocráticos impostos pelo governo do país. Por sua vez, a ausência de visto dificulta a busca de emprego, a matrícula de crianças na escola e a obtenção de atendimento médico.
Nos espetáculos da One Hand Puppet, o anseio de voltar para casa é tema recorrente das histórias, protagonizadas por bonecos mas concebidas pela trupe de pequenos Ulisses saudosos de suas Ítacas.
“Não sei o que é casa, onde fica a minha”, diz Al-Aziz. “Quando lembro meus antepassados, penso que é a Palestina. Mas nunca fui lá, ela só existe para mim pelos relatos de outros. Ao mesmo tempo, meus amigos de infância estão na Síria e passei metade da minha vida na Alemanha.”
No depoimento que grava para o filme-peça de Christiane Jatahy, ele revela os estratagemas de que lançou mão para conseguir abrigo no Líbano, em narrativa que faz jus às interferências da deusa Atena, responsável pelos disfarces de seu protegido Ulisses.
Nos anos 1980, passou-se por cego em seu país de origem para escapar de prisão e interrogatórios com recurso à tortura patrocinados pela ditadura de Hafez al-Assad, pai de Bashar.
A fim de ter permissão para ancorar em Beirute (o destino possível, apesar da guerra em curso ali), raspou a cabeça, usou um documento alheio e fingiu estar acometido por uma infecção que o obrigaria a passar por exames na capital. No faz de conta, um xarope translúcido jogado numa garrafa representava sua saliva —sua suposta enfermidade desregularia a salivação.
Por anos, Abed al-Aziz viveu sob outra identidade. Só deixou cair a máscara diante da mulher que o entrevistou para uma vaga de trabalho em um campo voltado a crianças com necessidades especiais.
DIA 2 O destino hoje é o vale do Bekaa, faixa de terra espremida entre o monte Líbano, a leste, e a cadeia Anti-Líbano, a oeste. A ideia da equipe é gravar com o trio de atores no entorno de dois campos da região, em cenas nas quais eles serão o tempo todo instados a alternar ficção e realidade, a “Odisseia” grega com as suas próprias, num mesmo canto de dor, saudade e expectativa.
Antes do Bekaa, parada em um prédio em construção à beira da estrada, ao lado de um belvedere. Jatahy escolhe um balcão para ambientar, sem ensaio prévio, a cena em que Circe, a feiticeira que recebe a esquadra de Ulisses pouco antes do regresso a Ítaca, surpreende-se com o fato de ele ter resistido a um sortilégio para transformá-lo em porco —seus companheiros não tiveram a mesma sorte.
Nesse ponto, a diretora retoca o original para salientar o paralelo entre a “coisificação” do bando de Odisseu e a forma como são tratados hoje os refugiados, encurralados em cubículos de lona e compensado de madeira montados em campos gélidos a metros de distância de estábulos em que se apertam cavalos, camelos e ovelhas, como se verá no Bekaa.
Circe quer saber quem de fato é seu engenhoso interlocutor, de onde vem. Cansado da aventura épica, da ficção, ele se revela então Omar al-Jbaai, ator, 36. Ela também entrega sua identidade:
Yara Ktaish, atriz, 25.
Rasgada a fantasia, o casal entabula então aos risos um diálogo semi-improvisado. A diretora aprova o desvio do roteiro: “O que importa é o espírito da coisa”.
Como o mestre de obras não gostou de ver seu canteiro transformado em set, a equipe é forçada a achar novo porto para a gravação da mesma cena, com o segundo Ulisses, Jehad Obeid, ator, 43. É no terraço da casa dele que acabará atracando.
Exílio e deriva continuam em pauta horas mais tarde, já no Bekaa, no restaurante com vista para a estrada por onde chegam os sírios em busca de refúgio. A fronteira fica logo ali. “É tão perto, mas tão longe”, diz Ktaish ao repórter. “É como se eu visse o seu rosto, mas não pudesse tocá-lo.”
Com o mesmo pano de fundo, Al-Jbaai grava seu depoimento pouco depois. Diz que está no Líbano há quatro anos, sem documentos, e narra com um misto de sofreguidão e sarcasmo suas incursões pela burocracia consular para conseguir vistos de viagem e permissões de residência.
“A embaixada não se importa com teatro, com o que você ama ou a cor que prefere”, impacienta-se. “Os países não me reconhecem. A guerra na Síria não nos custou coisas materiais, dinheiro, e sim uma pátria.”
A isso ele mistura o nono canto da “Odisseia”, em que o protagonista se apresenta, mas inserindo um “caco”: no verso “nada enxergo de mais doce do que a vista da nossa terra”, o adjetivo passa a ser “duro”. E se vira para fitar a estrada na colina.
A diretora gosta do resultado. Acha, contudo, que ele pode se soltar mais em uma segunda tomada, e o ator responde com toda sorte de improvisos. Quando o estridente chamado para a reza de uma mesquita vizinha irrompe cena adentro, Al-Jbaai imita o solfejo daquela voz que ecoa longe. Em seguida, é a vez de carros margearem o set de ocasião; passado o alarido dos motores, ele graceja para a câmera: trata-se da frota dos embaixadores de Beirute.
Já é noite quando a equipe chega a um campo à beira da estrada, a 15 minutos de Zahle, a terceira maior cidade do país, e é recebida pelo fundador do abrigo, um sírio sunita há seis anos radicado no Líbano. Ele fala das notícias que chegam de além-morro, da convivência difícil com os nativos e da decepção de muitas famílias. “Viemos para isso?”
A mesma desilusão transborda do testemunho que Ktaish dá minutos depois, nos fundos do campo, com a luz dos faróis dos carros tirando seu corpo franzino do breu a cada tantos segundos —a penumbra é um aceno ao Hades grego, pouso dos mortos e das memórias.
Há seis anos longe de casa, ela conta viver de lembranças de lugares destruídos pela guerra —o trio de atores da escala libanesa da odisseia de Jatahy é natural de As-Suwayda, no sudoeste da Síria. Diz sentir-se presa em um limbo que a sufoca. E chora. Do lado de cá da câmera, a tradutora libanesa também sucumbe. Ktaish pede um minuto para fumar.
DIA 3 Está tudo acertado para a gravação da “cena da mesa”, a festa-banquete em que Ulisses rememora suas artimanhas para derrotar o ciclope e outros triunfos: arroz, frango, batata frita e ingredientes para fatuche e tabule comprados, cadeiras e mesas de plásticos reservadas, figurantes vindos dos campos da região avisados, previsão do tempo favorável.
Mas o produtor local, ele também sírio, diz haver problemas com os direitos de uso da imagem do trio de atores. Impede o prosseguimento das gravações enquanto não receber garantias.
O impasse persiste até o fim do dia, ritmado por longas conversas a portas fechadas no hotel de Zahle. À noite, resolvido o quiproquó, Jatahy resume a jornada: “Hoje foi o agora que demora”.
DIA 4 Na entrada do estábulo em que será rodada a primeira cena do dia, Obeid, que divide com Al-Jbaai o papel de Ulisses sírio, fala dos filhos de cinco e dez anos que ficaram do outro lado da fronteira, com a mãe, quando ele partiu, há pouco mais de um ano.
Sua atual mulher é professora de árabe, mas ganha a vida no Líbano vendendo acessórios de couro. Ele ganha algum dinheiro dublando novelas turcas e sul-coreanas, mas se afastou do teatro, sua segunda casa na terra natal. “Não é escolha
minha estar aqui.”
Lá dentro, a equipe se vê reforçada pela criançada do campo anexo, fascinada pelo aparato de imagem e som —mas só os garotos estão ali. Todos eles se apertam entre três camelos, um cavalo e recém-chegadas 14 ovelhas.
Na cronologia, a cena de agora é a imediatamente anterior à filmada no balcão do prédio em construção. Aqui, Ulisses encontra seus companheiros de viagem em uma pocilga, transformados em porcos.
A diretora acha que Ktaish, a Circe, está demasiado parada diante de Al-Jbaai, o Ulisses. Pede a ela que interaja com um dos camelos, animal conhecido pelo caráter, digamos, temperamental. A solução acaba sendo ir contracenar com o rebanho ovino, no outro canto do estábulo.
Pouco depois, Jatahy pede que os atores se beijem. Eles declinam. Casais muçulmanos não costumam trocar carícias diante dos olhares de estranhos, e ainda menos de estranhos mirins.
Pano rápido para o campo do outro lado da estrada, onde 40 figurantes, dentre os quais há casais, crianças e idosos, aguardam ansiosos a prometida “cena da mesa”. Da tenda que serve de ponto de apoio, vem a horas tantas um remix do hit latino “Despacito”, mas nem a fartura de decibéis incita os convivas à dança.