Com batom comestível, indústria da beleza mira crianças pequenas na Coreia do Sul
Yang Hye-Ji estruturou sua rotina matinal no ano passado, quando estava no jardim de infância. Uniforme? Vestido. Lição de casa? Feita.
Maquiagem? É claro.
“A maquiagem me deixa bonitinha”, explicou a garota de sete anos na segunda vez que foi ao spa-salão de beleza ShuShu & Sassy, em Seul.
Ela estava envolta num robe cor-de-rosa tamanho infantil, com os cabelos presos por uma faixa de coelhinho. Seu rosto estava sendo retocado levemente com uma esponja. Nos lábios, um brilho cor-de-rosa.
A indústria de cosméticos sul-coreana, conhecida como k-beauty (beleza sul-coreana), é uma força econômica crescente na Ásia e virou fenômeno mundial, sendo conhecida por pelos tratamentos rigorosos e o passo a passo que preconiza.
Mas as normas de beleza impõem pressão enorme às mulheres sul-coreanas, convertendo o país em um dos maiores centros mundiais de cirurgia plástica. E, cada vez mais, a indústria da beleza tem como alvo meninas cada vez menores.
Esse fato vem gerando receios que resvalam em muitas das discussões sociais fundamentais na Coreia do Sul: até que ponto a sociedade deve ou não valorizar a beleza, se as mensagens sobre beleza expulsam outras aspirações da cabeça das meninas, se é sequer correto acrescentar mais pressão a uma infância já sobrecarregada por horários letivos muito longos e exames escolares cujos resultados podem definir o futuro das crianças.
“As heroínas de quadrinhos que as menininhas admiram são totalmente maquiadas dos pés à cabeça”, disse Yoon-Kim Je-yeong, professora do Instituto de Corpo e Cultura da Universidade Konkuk, em Seul.
“Quando colocam a maquiagem e o vestido para imitar as personagens, as meninas interiorizam a ideia de que o sucesso de uma mulher está estreitamente ligado à beleza.”
Os anunciantes não primam pela sutileza.
Um outdoor de kits de maquiagem para meninas de seis anos traz uma foto de uma garotinha de uniforme escolar passando batom, com a legenda: “Eu observo minha mãe e sigo seu exemplo. Estou crescendo hoje.”
Um vídeo no YouTube de uma garota de sete anos passando batom, intitulado “Quero usar maquiagem como a mamãe”, já foi visto 4,3 milhões de vezes. Outros vídeos semelhantes mostram garotinhas compartilhando sua “rotina de maquiagem para a escola primária” ou “abrindo meu kit de maquiagem da Hello Kitty”.
A ShuShu Cosmetics é pioneira no esforço do k-beauty para vender para crianças. Fundada em 2013, a empresa opera 19 butiques espalhadas pela Coreia do Sul, oferecendo cosméticos “mais saudáveis” para crianças, como esmalte de unhas solúvel em água e batons não tóxicos em cores “comestíveis”.
Há tatuagens e brincos adesivos, um creme de limpeza facial que “derrota o sol”, sabonete “menina bonita” e xampu de leite de cabras com o slogan “eu não sou bebê”.
No spa-salão de beleza, meninas de 4 a 10 anos podem curtir um tratamento completo, por US$ 25 a US$ 35, que inclui banho para os pés, massagem dos pés e panturrilhas, máscara facial, maquiagem, manicure e pedicure.
“O lema de nossos salões é que aqui as crianças podem brincar enquanto acompanham suas mães”, disse Grace Kim, gerente da ShuShu Cosmetics. “Nossos produtos são de uso seguro também para grávidas.”
A tendência da beleza para meninas pequenas não chega a limitar-se à Coreia do Sul. Kylie Jenner montou um império de cosméticos que movimenta estimados US$ 900 milhões e é voltado principalmente às meninas adolescentes. Vloggers de beleza mirins são populares também nos Estados Unidos e outros países.
Acadêmicos de várias vertentes analisam há décadas o impacto da pressão exercida sobre adolescentes e mulheres jovens no Ocidente para se adequarem a padrões pouco realistas de aparência e tipo corporal.
Na Coreia do Sul, porém, essa preocupação agora também abrange meninas tão pequenas que mal sabem ler as embalagens dos produtos de beleza voltados a crianças de idade pré-escolar.
A indústria da beleza na Coreia do Sul é uma das dez maiores do mundo, movimentando mais de US$ 10 bilhões. Os sul-coreanos gastaram US$ 45 per capita com cosméticos em 2017, mais que os US$ 37 dos americanos e bem acima da média global de US$ 21, segundo a empresa de pesquisas de mercado Mintel.
O índice de cirurgias plásticas na Coreia do Sul é um dos mais altos do mundo. Uma em cada três mulheres de 19 a 29 anos diz que já se submeteu a procedimentos desse tipo, especialmente cirurgia das pálpebras, segundo o Instituto Gallup. De acordo com um estudo de 2017 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, o país é campeão mundial no número de cirurgiões plásticos per capita.
O k-beauty também está se popularizando nos Estados Unidos. No mês passado a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, compartilhou na internet sua rotina de cuidados com a pele, inspirada no processo trabalhoso de vários passos do k-beauty, envolvendo todo um arsenal de produtos.
A ShuShu já está vendendo seus cosméticos para crianças em Singapura e na Tailândia. A empresa pretende expandir suas vendas para os EUA e outros países.
O mercado de beleza infantil está crescendo, e a maquiagem para crianças é promovida como “uma nova cultura de brincadeira infantil”, disse Lee Hwa-Jun, especialista da Mintel na indústria sul-coreana da beleza. “As empresas de cosméticos sul-coreanas estão cada vez mais interessadas nas crianças como potenciais novas consumidoras”, ela explicou.
Algumas mulheres já estão reagindo contra a nova moda.
A maquiadora free-lancer Seo Ga-ram anunciou que vai recusar pedidos de clientes para maquiar crianças.
“Acho totalmente bizarro que kits de maquiagem de verdade estejam tomando o lugar de brinquedos”, ela escreveu em maio em um post no Facebook. “Por favor parem de consumir imagens de crianças posando com blush nas bochechas, lábios muito vermelhos e cabelos cacheados no salão.”
Mesmo assim, parece impossível frear a tendência, disse Kim Ju-duck, professor de estudos de beleza na Universidade Feminina Sungshin, em Seul. A mídia mostra cada vez mais imagens de meninas pequenas usando maquiagem, e há cosméticos acessíveis para meninas menores e pré-adolescentes.
Kim fez uma pesquisa em 2016 com 288 meninas na escola primária e constatou que 42% delas usavam maquiagem. A proporção teria subido desde então.
No Café PriPara Kids, nos arredores de Seul, meninas de 4 a 9 anos podem se fantasiar como sua personagem favorita de anime, fazer um tratamento de beleza e receber uma maquiagem leve. Podem pular no trampolim, comprar comida numa loja de brinquedo, percorrer uma passarela, cantar sua canção favorita de k-pop numa câmara de gravação e dançar num estúdio com as paredes forradas de espelhos.
A gerente do estabelecimento, Moon Young-sook, disse que o PriPara é “um espaço divertido para as crianças aprenderem sobre beleza e cuidarem de si próprias em um ambiente sem riscos”.
“As meninas gostam naturalmente de brincar com a maquiagem de suas mães”, ela explicou. “Em vez de passarem o batom da mamãe, cheio de substâncias químicas, a maquiagem de mentirinha que usamos aqui é um jeito mais seguro para as meninas realizarem seus sonhos.”
Kwon ji-hyun, 36, levou sua filha de seis anos e filho de dois anos ao café recentemente. Ela disse que o espaço reflete “as fantasias das meninas, a psique delas”.
“É verdade que esse espaço mergulha a criança muito cedo em um papel de gênero”, ela admitiu. “Mas minha filha não tem um papel de gênero muito fechado. Eu não a criei para ter uma ideia muito rígida sobre os papéis de gênero.”
Os críticos, porém, enxergam a tendência como sendo prejudicial.
“Das divas do k-pop até os cosméticos do k-beauty, o mercado que capitaliza em cima da objetificação das mulheres virou um ‘oceano vermelho’ hipersaturado na Coreia do Sul”, disse Yoon-Kim da Universidade Konkuk, usando um termo que descreve um mercado em que a concorrência é acirradíssima.
“O mercado enxerga nas consumidoras mirins um ‘oceano azul’ de expansão possível. Está pronto para instigar as inseguranças delas com sua aparência e ganhar dinheiro com isso.”