Como a extrema-direita espalhou mentiras convenientes sobre o incêndio de Notre-Dame
Enquanto um incêndio se espalhava pelas vigas antigas do espaço sob o teto da catedral de Notre-Dame, na segunda-feira (15), uma conflagração paralela se alastrava pelas redes sociais. Esta foi ateada intencionalmente, composta de uma série de teorias conspiratórias que se encaixavam perfeitamente em vieses culturais preexistentes. E não demorou para seguidores se inflamarem de ódio.
As teorias conspiratórias começaram a pipocar quase ao mesmo tempo que o incêndio, exatamente quando as pessoas viram o vídeo chocante da torre de Notre-Dame despencando. Enquanto as autoridades francesas começaram quase imediatamente a afirmar que o incêndio parecia ter sido acidental, o período breve passado entre a geração das imagens chocantes e sua explicação foi o bastante para figuras da extrema-direita o explorarem com suas insinuações sinistras. A visão de quase todas era quase idêntica e, aparentemente, completamente falsa: que o incêndio teria sido ateado intencionalmente, provavelmente por muçulmanos.
Agitadores conservadores nas redes sociais foram alguns dos primeiros a tirar conclusões sombrias e injustificadas sobre o incêndio, ainda enquanto ele ardia. Matt Walsh, blogueiro conservador que em sua biografia no Twitter se identifica como “fascista teocrata”, escreveu: “Não entendo como um incêndio destas proporções poderia acontecer acidentalmente”, acumulando quase 9.000 curtidas.
O Infowars, um blog conspiratório comandado por Alex Jones, se apressou a difundir rumores não verificados dizendo que o incêndio foi “ateado propositalmente” e vinculando-o a “ataques anticristãos”. A provocadora racista britânica Katie Hopkins foi muito mais explícita, dizendo que “parisienses judeus e cristãos” estavam sendo “expulsos da cidade por islâmicos e estão fugindo aos milhares”, fixando a hashtag #NotreDame às suas palavras.
Muitas figuras da direita aproveitaram a oportunidade para converter Notre-Dame em metonímia da civilização ocidental como um todo, deixando subentendido que o que corria perigo era muito mais que uma catedral. Quando o incêndio começou a repercutir nas redes sociais, o teórico conspiratório e vendedor de suplementos cerebrais Mike Cernovich tuitou em tom dramático que “o Ocidente caiu”.
Pouco depois, o analista de extrema-direita Ben Shapiro descreveu Notre-Dame como “monumento à civilização ocidental” e do “legado judaico-cristão”. Dados os rumores sobre potencial envolvimento muçulmano que já corriam soltos, esses tuítes evocaram o espectro de uma guerra entre o islã e o Ocidente, algo que já faz parte de muitas narrativas da extrema-direita. Esse tema foi também um dos elementos centrais do manifesto de Brenton Tarrant, o autor do massacre em Christchurch, Nova Zelândia.
Richard Spencer, racista profissional e criador do termo “alt-right”, defendeu abertamente essa guerra, declarando sua esperança de que o incêndio na catedral “instigue o homem Branco a agir –a tomar o poder em seus países, na Europa, no mundo”, e declarando tal insurgência “uma meta gloriosa”. E, como informou Jane Lytvynenko, do Buzzfeed, outras figuras, mais oblíquas, conseguiram ir ainda mais longe, desde a provocação no abstrato até o incitamento mais concreto. Uma “conta de paródia” fazendo-se passar pela Fox News forjou um tuite da deputada democrata Ilhan Omar, do Minnesota, dizendo “Eles colhem o que semeiam #NotreDame”.
Sob ataque implacável da direita –incluindo o presidente--, a deputada virou uma espécie de símbolo para as pessoas ativas nas redes sociais e que já estavam predispostas a enxergar o incêndio como uma conspiração muçulmana. O blogueiro David Futrelle, especialista em tudo o que existe de pior na Web, reuniu dezenas de tuítes alegando que Omar ou estaria se alegrando com o incêndio (“sorrindo por dentro”, “feliz como uma terrorista muçulmana”, “zonza e gargalhando”) ou que, de alguma maneira, o teria provocado. Múltiplas contas especularam se Omar estaria em Paris e se parentes dela teriam ateado o incêndio ou declararam falsamente que ela seria afiliada a uma organização muçulmana que teria ateado o incêndio.
A difusão de conspirações racistas infundadas é uma realidade lamentável, porém constante nas redes sociais, uma espécie de ruído de fundo de qualquer fato que esteja ocorrendo. Mas a mídia conservadora mais mainstream mostrou-se igualmente suscetível a dar ouvidos a uma narrativa de conflito civilizacional.
No programa de vídeo e podcast “The News and Why It Matters”, do TheBlaze.com, o ex-âncora da Fox News e atual radialista Glenn Beck aventou a possibilidade de o governo francês estar acobertando algo. “Se isto [o incêndio] foi ateado por islâmicos, acho que não vamos ficar sabendo, porque acho que isso colocaria fogo ao país inteiro”, disse Beck a seus co-apresentadores, acrescentando que o incêndio na catedral era “o momento World Trade Center” da França.
Na Fox News, Tucker Carlson entrevistou o colunista de extrema-direita Mark Steyn, que denunciou a França como sendo “ateia” e criticou o país “pós-cristão”. Enquanto Carlson ouvia, de cenho franzido e assentindo com a cabeça, Steyn relatou uma história sobre ter ido à missa na basílica de Saint-Denis, que hoje, declarou, fica “em um subúrbio muçulmano”, e afirmou que reconstruir Notre-Dame, como o presidente Emmanuel Macron prometeu fazer, será inútil.
Na manhã de terça-feira (16) as autoridades francesas declararam o incêndio extinto. A estrutura de Notre -Dame está intacta, embora sua torre agulha (a “Flecha”), um acréscimo feito à catedral no século 19, tenha desabado. Mas a conflagração conspiratória, uma corrupção da tendência humana natural a buscar identificar significado em acontecimentos, percorre nossa esfera de informação sem ser refreada. Não deveriam ser necessárias as súplicas de jornalistas para restringir esse fluxo perigoso de desinformação.
Já é mais que hora de aqueles que alimentam discursos inflamatórios, cientes de seu potencial para catalisar violência racista, ser obrigados a parar de brincar com fogo –antes que seja tarde demais para controlar o holocausto.
Tradução de Clara Allain