Competência criminal da Justiça Eleitoral
Sob o título “Competência criminal e crime comum conexo com eleitoral”, o artigo a seguir é de autoria de José Jairo Gomes, especialista em Direito Eleitoral, Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG e procurador regional da República (TRF-1).
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1. A Constituição Federal estabelece a Justiça Eleitoral como um dos órgãos integrantes do Poder Judiciário (art. 92, V), a ela dedicando os arts. 118 a 121. Trata-se de uma Justiça Especializada, cujas atribuições e competência limitam-se aos temas ligados ao exercício de direitos políticos, sufrágio e eleições.
A competência criminal da Justiça Eleitoral é extraída do próprio texto constitucional, na medida em que este lhe atribui o conhecimento e julgamento de causas criminais, como o habeas corpus (CF, art. 121, § 3º e § 4º, V), bem como ressalva tal competência, como ocorre com a parte final do inciso IV, art. 109, que de modo expresso ressalva a competência da Justiça Eleitoral em matéria criminal.
Conquanto a Lei Maior não especifique quais crimes são da competência da Justiça Eleitoral (como faz com a Justiça Federal no art. 109, IV ss.), resulta clara sua competência para o julgamento de toda matéria eleitoral e, portanto, também de crimes eleitorais.
2. Assentada a natureza constitucional da competência criminal da Justiça Eleitoral, é preciso delinear sua abrangência. Restringe-se ela ao crime eleitoral? Ou poderia a Justiça Eleitoral conhecer e julgar “crime comum” (de competência da Justiça Comum, que é Federal e Estadual) conexo com o eleitoral?
3. A conexão (juntamente com a continência) constitui modo de alteração da competência. Por esse instituto, é alterada competência fixada a partir da aplicação das regras legais que definem o juiz natural que conhecerá e julgará a causa penal, deixando-se, portanto, de considerar fatores normais de definição da competência como, por exemplo, o critério territorial.
O enfocado instituto tem por fundamento não apenas a economia processual (e.g., a produção de prova será comum se os processos forem reunidos), como também a segurança jurídica, na medida em que busca minimizar o risco e mesmo evitar decisões conflitantes ou contraditórias acerca de fatos relacionados ou que possuem vínculo entre si.
Como a legislação eleitoral não traz definição própria de conexão, aplica-se, subsidiariamente, a disposição contida no Código de Processo Penal (CE, art. 364). A respeito, dispõe o códex adjetivo punitivo: “Art. 76. A competência será determinada pela conexão: I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; II – se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas; III – quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.”
Claro está nesse dispositivo a caracterização da conexão pela ocorrência de pluralidade de infrações (concurso material de crimes), sendo assim classificada: a) intersubjetiva (CPP, art. 76, I), que se desdobra em: a.1) por simultaneidade; a.2) por concurso; a.3) por reciprocidade; b) objetiva ou teleológica (CPP, art. 76, II); e, c) probatória ou instrumental (CPP, art. 76, III).
4. Havendo conexão entre crimes, impõe-se a reunião dos processos e o julgamento conjunto de todos eles, formando-se, então, para todos os delitos o simultaneus processus.
Mas em qual juízo deverão os processos ser reunidos? Tal questão é regulada pelo art. 78 do CPP. No que aqui importa destacar, prevê o inciso IV do referido artigo que “no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta”, isto é, prevalecerá a “especial”.
5. Embora o debate sobre o tema em apreço não seja propriamente uma novidade, foi reacendido por força de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que reafirmou a possibilidade de prorrogação da competência da Justiça Eleitoral para o julgamento de “crimes comuns” conexos com crimes eleitorais. Nesse sentido:
Em face da alegada prática de crime eleitoral e delitos comuns conexos, asseverou ter-se caracterizada a competência da Justiça Eleitoral, considerado o princípio da especialidade. A Justiça especializada, nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral e do art. 78, IV, do Código de Processo Penal (CPP), por prevalecer sobre as demais, alcança os delitos de competência da Justiça comum.
Ato contínuo, o relator observou que a Constituição Federal (CF), no art. 109, IV, ao estipular a competência criminal da Justiça Federal, ressalva, expressamente, os casos da competência da Justiça Eleitoral e, consoante o caput do art. 121 (4), a definição da competência daquela Justiça especializada foi submetida à legislação complementar. A ressalva do art. 109, IV, e a interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais afastam a competência da Justiça comum, federal ou estadual, e, ante a conexão, implicam a configuração da competência da Justiça Eleitoral em relação a todos os delitos. (Informativo STF n. 933 – STF, Inq 4435 AgR-quarto/DF, rel. Min. Marco Aurélio, j. 13 e 14-3-2019).
De igual modo entendeu o Excelso Pretório em outras oportunidades: STF, Pet-AgRgAgRg 5801/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, DJe 1-3-2019; STF, PetAgRgAgRg 6694/DF, Red. p/ o acórdão Min. Dias Toffoli, 2ª Turma, DJe 28-5-2018; STF, CC 7033/SP, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, j. 2-10-1996.
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça também tem julgados perfilando esse entendimento: i) “[…] 3. Nos termos do art. 35, II, do Código Eleitoral, compete aos juízes eleitorais processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais. […]” (STJ, AgRg no IP 1181/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Corte Especial, DJe 3-8-2018); ii) “Ocorrendo crime eleitoral e comum (conexos), a competência para processar e julgar ambos os delitos é da Justiça Eleitoral” (STJ, CC 28378/PB, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 3ª Seção, DJ 27-11-2000, p. 1230); iii) “Havendo conexão entre um crime eleitoral e outro comum, a Justiça Eleitoral, em prejuízo, julgará os dois delitos. Conflito conhecido, declarando-se competente a Justiça Eleitoral. Acórdão: por unanimidade, conhecer do conflito e determinar a remessa dos autos à Justiça Eleitoral” ( STJ, CC 16.316/SP, Rel. Min. Felix Fischer, 3a Seção, DJ 26-5-1997, p. 22469). Vale registrar que nesses dois últimos julgados o crime comum conexo é federal, pois em ambos os casos figura como autor agente público federal.
À luz desse entendimento, a Justiça Eleitoral tem competência para conhecer e julgar: i) crime eleitoral; ii) crime eleitoral conexo com crime comum estadual; iii) crime eleitoral conexo com crime comum federal.
6. O fundamento jurídico para a afirmação da competência da Justiça Eleitoral para o julgamento de crimes comuns conexos repousa no art. 121, caput, da Constituição c.c. art. 35, II, art. 364, ambos do Código Eleitoral, e art. 78, IV, do Código de Processo Penal.
O art. 121, caput, a Constituição determina que lei complementar disponha sobre a “competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”. Isso é feito pelo Código Eleitoral (recepcionado pela Constituição como lei complementar), quando, em seu art. 35, II, estabelece competir aos juízes eleitorais “processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos”; e também em seu art. 364, ao determinar a aplicação “subsidiária ou supletiva” do CPP no “processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos”. Por sua vez, o art. 78, IV, do CPP estabelece critério para a definição do juízo prevalente ao dispor que “no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta”.
Disso se infere que, sendo a Justiça Eleitoral especial em relação à Justiça Comum (Federal e Estadual), sua competência prevalece sobre a da última, de sorte que se houver conexão entre crime eleitoral e crime comum, ambos deverão ser julgados pela Justiça Eleitoral, cuja competência é prevalente. Diz-se, nesse caso, que competência da Justiça Eleitoral é prorrogada ou expandida, porquanto em princípio ela não seria competente, tornando-se, porém, competente por força da conexão de crimes e da consequente reunião de processos.
7. Todavia – notadamente quanto a crime federal – essa conclusão está longe de ser pacífica. Juristas de escol negam a possibilidade de prorrogação da competência da Justiça Eleitoral na hipótese de haver conexão entre crimes eleitoral e federal. Argumenta-se ser impossível haver unidade processual nessa hipótese, com prorrogação da competência da Justiça Eleitoral, pois a competência dessa Justiça Especializada é conferida por norma infraconstitucional (CE, art. 35, II, in fine, e art. 364; CPP, art. 78, IV), não podendo prevalecer sobre a competência da Justiça Federal, porque esta encontra-se prevista expressa e diretamente na Constituição. Como é cediço, normas infraconstitucionais não podem alterar a Constituição, sob pena comprometer-lhe sua supremacia e força normativa. Tampouco a Constituição pode ser interpretada a partir de normas que lhe são inferiores. Deve, então, predominar a regra constitucional, considerando-se a competência de cada ramo do Poder Judiciário para o processo e julgamento dos crimes que, pela Constituição (no caso da Justiça Federal) e pela Lei (no caso da Justiça Eleitoral) lhes cabem. Consequentemente, impor-se-ia a tramitação separada dos respectivos processos, cada qual perante o seu próprio juiz natural, cada qual perante a sua própria Justiça.
Na jurisprudência, tal intepretação já mereceu prestígio no Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê nos seguintes julgado: CC 107.913/MT, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Seção, DJe 31-10-2012; CC 126.729/RS Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Seção, DJe 30-4-2013; HC 222118/ES, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, 5ª Turma, DJe 8-2-2017.
8. Em que pese a força e razoabilidade dessa interpretação, não foi a que prevaleceu na jurisprudência dos tribunais superiores, conforme visto. Em prol do entendimento jurisprudencial hoje dominante, entre outras coisas, argumenta-se que a parte final do inciso IV, art. 109, da Lei Maior, “ressalva” expressamente a competência da Justiça Eleitoral em matéria criminal. E se é certo que tal ressalva pode apenas significar a impossibilidade de a Justiça Comum Federal julgar crimes eleitorais, não menos verdadeiro é que também pode significar que a competência criminal da Justiça Eleitoral deve ser respeitada, mesmo quando concretamente firmada por conexão.
Quando a parte final do inciso IV, art. 109, da Lei Maior “ressalva” a competência da Justiça Eleitoral em matéria criminal, o que faz é afirmar a impossibilidade de a Justiça Federal julgar crimes eleitorais. Mas isso não significa que o contrário não possa ocorrer – ou seja, ausente vedação constitucional, não é juridicamente impossível que a Justiça Eleitoral possa julgar crimes federais quando conexos com delitos eleitorais; afinal, a proibição do referido dispositivo constitucional dirige-se à jurisdição federal, não à eleitoral. Em outros termos: a Constituição veda que a Justiça Federal julgue crimes eleitorais, mas não proíbe a Justiça Eleitoral de julgar crimes comuns conexos com delitos eleitorais. Seguramente, em juízo de ponderação que lhe é próprio e exclusivo, considerou o Constituinte que, em certos casos, o conhecimento e julgamento conjunto dos crimes comum e eleitoral será proveitoso para a concretização da ideia de justiça e, sobretudo, para a pacificação social, que, de resto, constitui o fim precípuo da jurisdição.
E mais: a Justiça Federal é Comum, tal como a Justiça Estadual. E a competência da Estadual é residual, o que significa que sua competência criminal material abrange “todos os delitos”, exceto os definidos como federais. Assim, a especificação dos crimes federais no art. 109 da Constituição tem em vista apenas separar os crimes comuns de competência da Justiça Federal dos demais, que caem na competência residual da Justiça Estadual.
9. Considerando, então, que a Justiça Eleitoral pode ter sua competência prorrogada ou ampliada para conhecer e julgar crime comum conexo, quer seja federal, quer seja estadual, algumas questões merecem detida reflexão – especialmente no que tange aos desdobramentos práticos dessa definição.
10. Com efeito, a aferição da conexão e o efetivo deslocamento da competência para a Justiça Eleitoral passam por etapas lógicas sucessivas, que necessariamente devem ser cumpridas, a saber: a) verificar se há crime eleitoral efetivamente imputado ao réu; b) se concretamente houver imputação de delito eleitoral, pesquisar se há relação de conexão entre ele e o crime comum considerado; c) se houver crime eleitoral imputado e se existir conexão, cumpre ainda verificar se é caso de reunião dos processos ou de separação.
11. Em primeiro lugar (item 10, a, supra), é preciso verificar se existe crime eleitoral efetivamente imputado ao réu, isto é, se há “imputação criminal eleitoral”. É pelo ato processual de imputação que se afirma formalmente a ocorrência de um fato e sua subsunção ou adequação a um tipo penal (adequação típica). É pela imputação que a pretensão material acusatória é submetida ao Estado-juiz.
A imputação criminal é veiculada na denúncia apresentada pela acusação, que em regra é o órgão do Ministério Público. E a formalização da denúncia com o seu protocolo na secretaria do juízo marca o início do processo penal (mas tem prevalecido o entendimento de que o processo penal se inicia com o recebimento da denúncia).
Duas situações podem ser delineadas. Na primeira, existem dois processos em andamento perante juízos distintos: i) um por crime comum tramitando na Justiça Comum, e ii) outro por crime eleitoral tramitando na Justiça Eleitoral.
Na segunda situação, existe apenas um processo tramitando na Justiça Comum. Nesse caso, podem-se figurar quatro hipóteses, a saber: a) na denúncia, há narração fática e tipificação legal de crime eleitoral; b) na denúncia, há apenas narração fática (sem tipificação legal) de crime eleitoral; c) na denúncia, há apenas tipificação legal (mas não narração fática) de crime eleitoral; d) na denúncia, não há narração fática nem tipificação legal de crime eleitoral.
12. Em segundo lugar (item 10, b, supra), é preciso verificar se há relação de conexão entre os crimes considerados. Em caso positivo, os processos poderão ser reunidos para julgamento conjunto, formando-se o simultaneus processus.
Deveras, a afirmação da conexão implicará o deslocamento da competência do juiz natural, competência essa prévia e abstratamente definida com base nos critérios legais, quais sejam: Justiça competente, foro ou território (competência ratione loci) e juízo (competência de juízo).
Cumprirá, então, ao juízo comum declinar de sua competência e remeter o processo ao juízo cuja competência é prevalente, no caso o eleitoral. Se o juízo comum não o fizer, o art. 82 do CPP permite ao juízo com competência prevalente “avocar” (ou chamar para si) o processo.
No caso, pertence ao juízo eleitoral a prerrogativa de decidir i) se há crime eleitoral imputado, ii) se há conexão entre os crimes eleitoral e comum, e iii) se os processos devem ou não ser reunidos ou separados.
12.1 No entanto, a letra “d” da segunda situação descrita no item 11 traz hipótese diversa. Se na denúncia não houver descrição de fato nem tipificação legal de crime eleitoral (isto é, se não houver imputação de crime eleitoral), por óbvio sequer se haverá de cogitar a ocorrência de conexão, muito menos de remessa dos autos a um suposto juízo com competência prevalente.
Aqui, o declínio de competência e a consequente remessa dos autos para a análise do juízo eleitoral a fim de este averiguar se existe crime eleitoral é de todo injustificável. Ainda porque a Justiça criminal – inclusive a Eleitoral – não é órgão consultivo, sendo-lhe vedado pronunciar-se in thesi sobre a existência ou não de crime, sem que nem mesmo haja imputação em denúncia formulada pelo órgão do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública. Se tal ocorresse, haveria grave violação ao sistema acusatório e ao devido processo legal garantidos na Constituição, notadamente em razão da possível antecipação de juízo de mérito acerca de “fato hipotético”, em relação ao qual jamais poderia vir a ser formalizada denúncia criminal pelo Parquet e, pois, instaurado o devido processo penal.
De aplicar-se a regra ‘competenz-competenz’, segundo a qual todo juiz tem competência para examinar sua própria competência para conhecer e decidir determinada causa. De sorte que compete ao juiz comum apreciar a sua própria competência para julgar a causa penal que lhe é submetida pelo órgão acusatório do Ministério Público.
Vale ressaltar que imputação fática em denúncia penal é diferente de mera contextualização de evento criminoso. Ainda que na descrição do injusto penal comum haja alusão ou referência a ambiente eleitoral ou a eleições ou a qualquer aspecto eleitoral, isso só por si não significa que haja crime eleitoral, tampouco que exista conexão com delito eleitoral. Sobre isso, considerem-se os seguintes exemplos.
Exemplo 1: o furto (CP, art. 155) cometido durante comício eleitoral não deixa de ser crime comum da competência da Justiça Comum Estadual se em sua descrição na denúncia houver alusão ao comício ou às eleições.
Exemplo 2: se alguém comete latrocínio (CP, art. 157, § 3º, segunda parte) ou estelionato (CP, art. 171) e depois alega que usou o dinheiro produto do crime para comprar voto (CE, art. 299), essa destinação só por si não implica conexão entre os referidos crimes comum e eleitoral.
O que se tem são delitos diversos de competência de diferentes Justiças, fato que não se altera se nas denúncias de latrocínio e estelionato ficar registrado que o produto do crime foi empregado para comprar voto. O crime eleitoral aí é autônomo em relação aos comuns, notadamente porque sua caracterização independe da origem do recurso financeiro usado pelo agente.
Tome-se ainda como exemplo o processo penal instaurado na 3ª Vara da Subseção Judiciária Federal de Juiz de Fora/MG em razão do atentado que vitimou o então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro, ocorrido no dia 06 de setembro de 2018. A denúncia criminal descreve a ocorrência do fato e o define como crime político, tipificando-o no art. 20 da Lei nº 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional). Sustenta a denúncia que o atentado teve motivação política, consistente em excluir a vítima da disputa eleitoral, resultando lesado o regime representativo e democrático. Pois bem. Ao ser esfaqueado, o candidato realizava importantes atos de campanha e propaganda eleitoral – que foram interrompidos. Alguém poderia sustentar que houve também a prática do crime eleitoral descrito no art. 332 do CE, que tipifica a conduta de “Impedir o exercício de propaganda”. E, consequentemente, pleitear o declínio da competência do juízo comum e a remessa dos autos para a Justiça Eleitoral alegando a existência de conexão ou continência. Todavia, o acolhimento desse pleito pelo juízo federal seria rematado absurdo, eis que na denúncia não há descrição nem tipificação de crime eleitoral, tampouco foi instaurada na Justiça Eleitoral a persecução penal do referido fato. De sorte que a questão deve ser decidida pelo próprio juízo federal, que em tal situação é competente para resolver sobre sua própria competência.
13. Em terceiro lugar, mesmo que haja crime eleitoral imputado e conexão com crime comum (item 10, c, supra), cumpre ainda verificar se é hipótese de reunião dos processos ou se é caso de separação.
No âmbito do processo penal, não se pode olvidar que a reunião de processos por conexão não é obrigatória. O próprio código processual prevê um grupo de casos em que a separação é obrigatória, e outro em que ela é facultativa.
Assim, dispõe o art. 79 do CPP que a conexão e a continência não importarão unidade de processo e julgamento quando: i) houver concurso entre a jurisdição comum e a militar, ii) houver concurso entre a jurisdição comum e a Justiça da Infância e da Juventude; iii) se em relação a algum corréu sobrevier doença mental, com a consequente instauração de incidente de insanidade mental em relação a ele (CPP, art. 152); iv) na hipótese de corréu citado por edital (CPP, art. 366).
Por outro lado, o art. 80 do código veicula hipóteses de separação facultativa nos seguintes termos: “Será facultativa a separação dos processos quando as infrações tiverem sido praticadas em circunstâncias de tempo ou de lugar diferentes, ou, quando pelo excessivo número de acusados e para não Ihes prolongar a prisão provisória, ou por outro motivo relevante, o juiz reputar conveniente a separação.”
Note-se na parte final desse dispositivo legal o emprego da cláusula aberta “outro motivo relevante”, a qual autoriza o juízo a determinar a separação dos processos sempre que reputar conveniente.
Tem-se, pois, que mesmo que haja imputação de crime eleitoral conexo com crime comum, ainda assim é possível afastar a reunião dos processos por motivo relevante. Consoante salientado, a separação deve ser decidida pelo juiz com competência prevalente, que na situação enfocada é o juiz eleitoral.
14. Também não se pode olvidar o disposto no art. 82 do código processual penal. Nos termos desse dispositivo: “Se, não obstante a conexão ou continência, forem instaurados processos diferentes, a autoridade de jurisdição prevalente deverá avocar os processos que corram perante os outros juízes, salvo se já estiverem com sentença definitiva. Neste caso, a unidade dos processos só se dará, ulteriormente, para o efeito de soma ou de unificação das penas.”
Ao tempo em que embasa a decisão da Justiça Comum de declínio de competência e remessa dos autos ao juiz eleitoral, a primeira parte do citado dispositivo permite ao juiz eleitoral avocar (ou chamar para si) o processo comum conexo.
Por certo que dessas decisões poderão surgir conflitos, positivo ou negativo, a serem solvidos pelo Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, I, d, da Lei Maior – que lhe incumbe de “processar e julgar, originariamente […] os conflitos de competência entre […] juízes vinculados a tribunais diversos”.
De outro lado, em sua segunda parte, o aludido art. 82 justifica a separação de processos quando um deles encontrar-se adiantado em relação ao outro. Com fundamento na razão subjacente a essa regra legal, estabelece a Súmula 235 do STJ que: “a conexão não determina a reunião dos processos, se um deles já foi julgado”. Em igual sentido, tem a jurisprudência proclamado ser “inviável a reunião de processos supostamente conexos se um deles já foi julgado” (STJ, CC 154.407/PR, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 3ª seção, DJe 20-10-2017). No entanto, se um dos processos já encontrar-se julgado, poderão ser reunidos na fase de execução da sentença penal condenatória, o que será determinado pelo juízo da execução criminal.
15. Quid juris se, sendo hipótese de reunião de processos conexos para julgamento conjunto, essa medida não for adotada? A não reunião dos processos poderia ensejar nulidade processual?
Consoante dispõe peremptoriamente o art. 564, I, do CPP, há nulidade “por incompetência” do juízo.
Ocorre, porém, que esse dispositivo relaciona-se à “competência” do juízo natural fixada consoante os critérios prévia e abstratamente previstos no sistema processual penal. É nesse sentido que se afirma que o julgamento da causa por juiz “incompetente” (ou que não observou os referidos critérios) acarreta nulidade processual, justamente por se infringir a garantia fundamental do juiz natural (CF, art. 5º, LIII). Vários são os critérios de fixação da competência, tais como a pessoa (foro privilegiado ou por prerrogativa de função), a função (critério funcional), a matéria (critério material ou ratione materiae), o lugar ou território (ratione loci), o juízo.
Mas entre esses critérios não figura a conexão nem a continência, porque esses institutos não constituem critérios de fixação de competência, mas sim regras de modificação da competência previamente estabelecida segundo os aludidos critérios de fixação.
No âmbito dos institutos da conexão e continência o que se debate é a necessidade ou conveniência de se reunirem processos para julgamento conjunto pelo mesmo órgão judicial; processos esses que tramitam perante diferentes juízos, os quais são naturalmente competentes segundo as regras de fixação de competência. Uma vez reconhecida, a conexão promoverá a expansão da competência do juízo que, segundo os critérios de fixação, inicialmente não seria o competente.
A reunião de processos conexos e a consequente formação do simultaneus processus submete-se a regime legal próprio. Assim, havendo conexão:
a) o juiz comum poderá espontaneamente (ex officio) declinar de sua competência e remeter os autos para o juízo eleitoral (CPP, art. 109);
b) ao tomar conhecimento do processo conexo, o juiz eleitoral poderá avocá-lo (CPP, art. 82);
c) o réu poderá ingressar com exceção de incompetência “no prazo de defesa” (CPP, art.108), pleiteando a remessa dos autos ao juízo eleitoral. Note-se que para a defesa, haverá preclusão temporal se não for oposta a exceção de incompetência “no prazo de defesa” (CPP, art. 95, II, c.c. art. 108), ou seja, na primeira defesa ofertada nos autos, que coincide com a “resposta à acusação” de que falam os arts. 396 e 396-A do CPP.
Não ocorrendo as situações assinaladas, haverá perpetuação da competência do juízo comum, seguindo os processos tramitando separadamente.
Contudo, se ocorrer a primeira ou a segunda situação (a ou b) ou – no caso da terceira situação (c) – sendo acolhida a exceção de incompetência, o processo conexo deverá ser remetido ao juízo eleitoral, ao qual compete decidir: a) se há conexão entre os crimes eleitoral e comum, e b) havendo ou não conexão, se os processos devem ser reunidos ou separados.
Se entender que os processos devem ser separados (independentemente de existir conexão ou continência), o juízo eleitoral devolverá os autos respectivos ao juízo de origem, seguindo tão somente na presidência do processo do crime eleitoral. Entretanto, decidindo que devem ser reunidos, formar-se-á o simultaneus processus para todos os delitos, i.e., para o delito eleitoral e o comum, havendo, então, prorrogação de sua competência.
Como se vê, diante da possibilidade de perpetuação da competência do juízo comum, não há espaço para discutir se há ou não nulidade com fulcro no art. 564, I, do CPP. Deveras, nessa circunstância não se há de falar em “incompetência” do juízo comum. Primeiro, porque é ele o juiz natural da causa conforme o sistema processual. Segundo, porque sua competência restou perpetuada. Se houve a perpetuação da competência do juízo comum, ofende a lógica e a razão falar-se em ocorrência de nulidade por incompetência do juízo.
15.1 Nesse quadro, só se poderia cogitar de nulidade processual quando houver decisão determinando a reunião dos processos conexos, sendo tal decisão descumprida pelo juízo comum.
A competência do juízo eleitoral para o simultaneus processus é do tipo funcional, porque vinculada à sua função. E como tal possui natureza absoluta. A propósito, o art. 62 do CPC dispõem que a “competência determinada em razão […] da função é inderrogável por convenção das partes”.
Mas vale assinalar que, mesmo sendo absoluta, a nulidade só gera efeito concreto se for declarada judicialmente. O efeito invalidante não é automático, mas depende sempre de declaração judicial.
Outrossim, na apreciação da nulidade, é preciso considerar a instrumentalidade das formas, notadamente se a irregularidade que a motivou carreou prejuízo às partes (CPP, art. 563). Nesse sentido, assentou o Excelso Pretório que o reconhecimento de nulidade dos atos processuais demanda a demonstração do efetivo prejuízo causado, sem o que “estar-se-ia diante de um exercício de formalismo exagerado, que certamente comprometeria o objetivo maior da atividade jurisdicional” (STF, HC 119372, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, j. 04/08/2015).
Por outro lado, em que pese o protesto da doutrina processual penal, pacificou-se na jurisprudência a incidência do art. 567 do CPP mesmo se for absoluta a nulidade. Por esse dispositivo: “A incompetência do juízo anula somente os atos decisórios, devendo o processo, quando for declarada a nulidade, ser remetido ao juiz competente.” E mais: tem-se entendido na jurisprudência dos tribunais superiores que até mesmo certos “atos decisórios” praticados por juízo incompetente comportam ratificação.
Assim: i) “Tanto a denúncia quanto o seu recebimento emanados de autoridades incompetentes rationae materiae são ratificáveis no juízo competente” (STF, HC 83006, Rel. Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, j. 18/06/2003); ii) “1. Este Tribunal fixara anteriormente entendimento no sentido de que, nos casos de incompetência absoluta, somente os atos decisórios seriam anulados, sendo possível a ratificação dos atos sem caráter decisório. Posteriormente, passou a admitir a possibilidade de ratificação inclusive dos atos decisórios. Precedentes. Agravo regimental a que se nega seguimento.” (STF, RE 464894 AgR, Rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, j. 24/06/2008). No mesmo sentido, vide: STF, RHC 129809, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, j. 15/03/2016; STF, RHC 127757, Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, j. 02/06/2015; STF, HC 88262, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 08/08/2006.
16. Questão interessante se apresenta quando houver conflito aparente de normas, sendo o crime eleitoral absorvido pelo comum.
No caso, a norma definidora do crime eleitoral constituiria meio necessário ou etapa normal de preparação ou realização do “crime comum”. Dentre as regras apontadas pela doutrina para a solução da questão, destaca-se a consunção (aplicável às hipóteses de crime progressivo, crime complexo e progressão criminosa – esta subdividida em progressão criminosa em sentido estrito, antefactum e postfactum impuníveis). Na consunção, a intenção criminosa é concretizada mediante o cometimento de mais de uma infração. No entanto, o agente é punido por apenas um delito (chamado crime-fim), o qual absorve o outro, denominado crime-meio.
Sendo eleitoral o crime-meio e comum o crime-fim, qual juízo será competente para julgar a causa?
Afigura-se razoável o entendimento que considera competente o juízo comum, em detrimento do eleitoral. Isso porque é esse o delito que efetivamente será julgado.
Retomando o citado exemplo do atentado que vitimou o então candidato presidencial Jair Bolsonaro, é isso que parece ter ocorrido. Na ótica da acusação, o crime-fim cometido pelo agente foi o de “praticar atentado pessoal” por inconformismo político, com vistas a eliminar ou matar o candidato que se encontrava em pleno ato de campanha e propaganda eleitoral. Para tanto, porém, foi necessário realizar a figura típica do art. 332 do CE, de modo a “Impedir o exercício de propaganda”. O crime eleitoral, aqui, é absorvido pelo crime comum, que deve ser julgado pelo juiz comum.
17. Havendo efetiva reunião de processos por conexão ou continência, cumpre ainda destacar a situação em que há absolvição pelo crime que atraiu a competência da Justiça Comum. Continuaria o juízo eleitoral competente para julgar o crime comum ou o processo deve ser devolvido ao juízo comum de origem?
A esse respeito, é preciso considerar a ocorrência de perpetuatio jurisdictionis do juízo com competência prorrogada, que na situação em exame é o eleitoral. A competência adquirida por força da conexão ou continência se perpetua, subsistindo ainda que haja absolvição ou desclassificação da infração de competência própria do juízo atrativo, i.e., que exerceu a atração.
Sobre isso, dispõe o art. 81, caput, do CPP: “Verificada a reunião dos processos por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.”
Por exemplo: em processo criminal tramitando na Justiça Comum, o juízo acolhe exceção oposta pela defesa fundada na existência de conexão com crime eleitoral que tramita perante juízo eleitoral, declina de sua competência e remete os autos ao juízo eleitoral (CPP, art. 108, § 1º). Reconhecendo a conexão entre os crimes, o juízo eleitoral determina a reunião dos respectivos processos. Finda a instrução conjunta, o juízo eleitoral absolve o réu do crime eleitoral. Nesse caso, dada a perpetuação de sua competência, continuará o juiz eleitoral competente para decidir o crime comum conexo.
Note-se, todavia, que essa solução não se aplica à hipótese de extinção de punibilidade (CP, art. 107) do crime em razão do qual se operou a atração. Assim, no exemplo citado, se em vez de absolver o réu pelo crime eleitoral, tivesse o juízo eleitoral declarado extinta a punibilidade pela ocorrência de prescrição da pretensão punitiva estatal, deve remeter os autos do processo por crime comum ao juízo de origem. É nesse sentido o pacífico entendimento da jurisprudência, consoante revela o seguinte julgado: “1. Na hipótese de conexão entre crime de descaminho e de receptação, em que existiu atração do processamento/julgamento para a Justiça Federal, sobrevindo a extinção da punibilidade do agente pela prática do delito de descaminho, desaparece o interesse da União, devendo haver o deslocamento da competência para a Justiça Estadual. 2. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Dourados/MS, ora suscitante.” (STJ, CC 110998/MS, Relatora Min. Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, j. 26/05/2010, DJe 04/06/2010).
18. À guisa de conclusão, pode-se afirmar que a competência criminal da Justiça Eleitoral deita raízes na Constituição Federal. Por se tratar de uma Justiça Especial, sua competência em matéria criminal é prevalente em face da Justiça Comum Federal e Estadual, sendo prorrogada ou expandida na hipótese de conexão (ou continência) de crime eleitoral com crime delito comum federal e estadual.
A aferição da conexão e o efetivo deslocamento da competência para a Justiça Eleitoral – com a consequente formação do simultaneus processus – requer a existência de processo (e não apenas de investigação criminal ou inquérito policial) e de crime eleitoral concretamente imputado ao réu em denúncia criminal, cumprindo ainda verificar se é caso de reunião dos processos ou de separação. Pertence ao juízo eleitoral a prerrogativa de decidir em definitivo acerca da existência de delito eleitoral e de conexão ou continência.
Viola o sistema acusatório e o devido processo legal consagrados na Constituição o pronunciamento prévio e in thesi da Justiça Eleitoral sobre a existência ou não de crime eleitoral e de conexão deste com crime comum, sem que nem mesmo haja denúncia por crime eleitoral formulada pelo órgão do Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública.
Na hipótese de haver conexão ou continência entre os crimes comum e eleitoral, a não oposição de exceção de incompetência no prazo da defesa ou a preclusão temporal da decisão que a rejeitou implicam a perpetuação da competência do juízo comum, não havendo que se falar em nulidade processual.
Havendo, porém, decisão determinando a reunião dos processos, o juízo eleitoral se torna funcionalmente competente para o processo e julgamento do crime comum conexo com o eleitoral. De maneira que a não reunião dos processos para julgamento conjunto acarreta a nulidade do processo comum. Nulidade essa de natureza absoluta por se tratar de (in)competência funcional. Mas os atos do processo invalidado poderão ser aproveitados no juízo prevalente, inclusive certos atos decisórios.
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