Comunista é a vovozinha
Eu estava lá. Cinco anos atrás, a bonita cidade baiana de Cachoeira, a 116 quilômetros de Salvador, recebeu um grupo eclético de escritores para sua festa literária, a Flica, que há pouco mais de um mês chegou à oitava edição. Mas o de 2013 seria um evento diferente.
Na tarde de 26 de outubro daquele ano, um sábado, acompanhávamos o debate entre Demétrio Magnoli, colunista desta Folha, e a cientista social Maria Hilda Baqueiro Paraíso, quando alguém gritou "Fascista!" e vieram os índios.
Bem, foi assim que pareceu a princípio. Vistos de perto, os índios se revelaram teatrais: os jovens negros seminus, cobertos de tinta e adereços, eram militantes de esquerda apoiados por uma claque que, munida de faixas, gritava: "Fascista! Racista!"
Conseguiram matar o debate. A direção alegou não ter como garantir a segurança dos convidados e cancelou a mesa. Aproveitou para suspender também a conversa da noite entre Luiz Felipe Pondé, outro colunista da Folha, e o sociólogo francês Jean- Claude Kaufmann.
O ato político grotesco que aleijou a Flica 2013 me veio à memória outro dia, quando lia uma das colunas em que Magnoli assumiu posição firme contra os riscos que Bolsonaro, com sua retórica autoritária, representa para o país.
Com um sorriso que só não virou gargalhada porque o momento requer compostura, me ocorreu a ironia da rasteira histórica sofrida por aqueles paspalhos pintados de Cachoeira.
Claro que eles estavam errados desde sempre. Como escrevi na ocasião, "se havia pessoas próximas do fascismo ali, eram aquelas que num 'fascio', grupo, ajuntamento, agiam com violência e à margem da legalidade para calar seus adversários. Fascistas eram os que gritavam 'fascista!'".
No entanto, faltava o último ato dessa tragicomédia. O falso fascista que os falsos índios impediram de falar na Bahia, por discordarem de sua visão liberal, hoje é seu aliado contra uma nova força política que, esta sim, exibe diversos traços fascistoides na bandeira.
Magnoli ficou no mesmo lugar. O mundo à sua volta é que se reconfigurou de modo radical: ao sabor da gangorra do poder, a intolerância que vinha da esquerda passou a vir, inclusive por reação newtoniana, da direita.
Na sua encarnação direitista, tem tons bem mais escuros. A retórica da morte ao discurso divergente agora inclui a morte propriamente dita de quem é diferente. No lugar da borduna cenográfica, corremos o risco de ver alcateias de armas de fogo engatilhadas vagando pelas ruas.
Diferença de tons à parte, nenhuma explicação para este Brasil sombrio de 2018 será completa sem a Flica 2013. A incapacidade de reconhecer no adversário político o direito à dignidade gerava fascistas fantasmagóricos. Hoje gera multidões de comunistas de araque.
Num caso de tumorização semântica semelhante ao de seu antípoda "fascista", "comunista" é hoje um insulto-ônibus paranoico e boçal. Abarca de liberais a esquerdistas, passando por qualquer um que defenda a liberdade de imprensa, o meio ambiente, o estado laico e o direito que têm os adultos de fazer sexo consensual com outros adultos à sua escolha.
Sim, eu sei: a língua nunca para, as palavras mudam. Só que às vezes mudam no sentido da desinformação e do diálogo de surdos. Nessas horas, recalibrar a linguagem para purgá-la de maluquice e histeria já não é suficiente, mas será sempre imprescindível. Comunista é a vovozinha.