Corpo de mãe e corpo de mulher
Perdi a conta das gestantes e mães de bebês que veem em "Alien - O Oitavo Passageiro" (1979) de Ridley Scott a completa tradução de sua fantasia assustadora da gravidez e de seu medo de dar à luz. Elas têm razão, afinal, por mais fofo que seja o bebê que se espera ter, as fases embrionárias humanas estão mais bem representadas pela imagem do monstro intergaláctico do que pelas imagens das propagandas de fraldas e mamadeiras.
Não são mães doentes, ainda que sofram, mas mulheres que tentam elaborar uma experiência cuja magnitude a linguagem jamais será capaz de abarcar. Vida, morte, sexo e a própria linguagem não cansam de nos exigir significados e elaborações que nunca chegarão ao fim e que, paradoxalmente, precisam ser produzidos.
Somos, inicialmente, inquilinos no corpo de uma mulher, o que não é pouca coisa para nosso incipiente aparelho psíquico elaborar. Todos os mamíferos passam por processo reprodutivo semelhante, mas apenas o homem tem o ônus e o bônus de tentar dar sentido a esse fato da existência.
Passado o tsunami do parto, no qual "nave-mãe" e "alien" se separam, a mulher começa um longo percurso de recuperação do próprio corpo, até então hospedeiro. Colo, amamentação e proximidade física vão sendo negociados paulatinamente entre mãe, bebê e outras pessoas não menos importantes. Vindos de fora dessa co-habitação primordial, pais, companheiras, avós e cuidadores são importantíssimos nessa transição. Está em jogo a separação de corpos para além do parto e o reconhecimento de que o corpinho minúsculo do recém-nascido encerra outro ser humano e não apenas parte da mulher.
Claro está que a experiência peculiar e radical descrita aqui não é reproduzível para pais, companheiras ou famílias adotivas, que não gestaram.
Para quem acha que isso faria uma diferença incontornável, nunca é demais lembrar que as experiências humanas são de saída opacas, quer dizer, cada um vai atribuir um sentido diferente a cada situação vivida. Uma mãe pode ter sérias dificuldades em se relacionar com o bebê que saiu de seu próprio corpo. Um pai pode se apaixonar já na sala de parto. Uma mãe pode adotar um filho que ela não pariu. Outra pode passar por todo processo de adoção sem nunca adotar de fato, ainda que obtenha a guarda.
Essa falta de garantias é tão assustadora que insistimos na fantasia de que gestação e parto garantiriam a maternidade. Que bom seria se o amor de mãe viesse de fábrica e não tivéssemos que lidar com a imagem de nosso absoluto desamparo ao nascer, indefesos e ainda mal-amados. Só tornando-se pai e mãe para termos o vislumbre da natureza do amor parental. E o que, se formos honestos, vislumbramos?
O amor humano é uma construção contingencial, sujeito a intempéries, que sempre carrega uma necessária dose de ódio, cujo convívio e insistência tendem a fortalecer e que se retroalimenta de nosso narcisismo. Convívio, insistência e narcisismo estão a favor da construção do amor de pais e mães, pois os bebês demandam tudo e são mestres em nos fazer sentir indispensáveis diante de seu desamparo inicial. A dose de ódio, que permite a emancipação de ambos, também não falta no amor dos pais e dos filhos.
Aos poucos, as mulheres marcam para seus filhos que o tempo do corpo compartilhado ficou para trás e que se eles puderem lidar com isso gradativamente, aprenderão a respeitá-las e a exigirem para si também o devido respeito. Reintegração de posse, basicamente.