Cozinheiros pela educação
Há muitas maneiras de contar a história de um povo. A mais saborosa é por meio das receitas que constituem sua tradição e dão unidade à diversidade social que convive em um território. Outra interface do cozinhar é simbólica: preparar alimentos vai além da manutenção da saúde do corpo. Envolve aspectos intangíveis, como o afeto e o cuidado, elementos que a ancestralidade inscreveu no feminino.
Como mulher, mãe e cozinheira, isso sempre foi muito claro para mim. E foi determinante para que aceitasse, em 2016, o convite do então secretário estadual de Educação, José Renato Nalini, para colaborar como voluntária com a reformulação do programa de alimentação escolar. Aceitei porque o governo concordou em abolir os alimentos ultraprocessados que compunham a merenda e que agravam os problemas da obesidade infantil, substituindo-os por gêneros in natura, mais saudáveis.
Daí surgiu o projeto Cozinheiros pela Educação, baseado em dois pilares. O primeiro, a definição de um cardápio, com o apoio de nutricionistas, feito a partir da tradição culinária paulista, de inquestionável sabor e riqueza nutricional. Comida da casa da avó: feijoada, cuscuz, picadinho, macarrão com sardinha, moela. O segundo, o foco nas merendeiras, mulheres que preparam mais de 2,5 milhões de refeições por dia nas escolas e que precisavam de reforço na capacitação para tornar a experiência alimentar mais prazerosa.
Não foi simples. Mudar cardápios impõe transformar mentalidades e mexer em processos de compras públicas que funcionavam no automático. Havia também o desafio da escala. Uma rede com mais de 5.000 escolas não é trivial. E, ainda, num conturbado contexto, pois o governo convivia com as denúncias sobre a chamada “máfia da merenda”.
Nos últimos três anos, ajudei a construir um cardápio compatível com o Orçamento do estado, balanceado e saboroso. Atuei na capacitação de mais de 1.600 merendeiras. Aprendi muito com a forma resiliente e esperançosa com que encaram os percalços da vida e como estão motivadas a aprender e melhorar.
Vi como milhares de crianças que compravam salgadinhos e frituras passaram a comer a merenda, melhorando a relação com o alimento e levando informação e consciência para as famílias. E como a cozinha desempenha um papel pedagógico.
Desde o fim de 2018, vejo com preocupação a displicência com que o assunto passou a ser tratado. Capacitações de merendeiras, realizadas no Centro Paula Souza, foram desmarcadas sem justificativa. O cardápio sofreu mudanças sem que a equipe responsável tenha sido comunicada. Qual a razão de tais retrocessos?
Estou aqui para ajudar a transformar a alimentação das nossas crianças e sigo à disposição para continuar com este objetivo. Enquanto a merenda não se tornar política de Estado, não apenas de governo, temo que ações como as que fizemos sejam acontecimentos efêmeros.
Vamos viver sempre como um barco em que o capitão não sabe para onde ir nem aonde quer chegar. No fim, naufraga. Temo pela continuidade de uma política de alimentação escolar arrojada —embora seja triste saber que comer com qualidade, no Brasil, é um gesto de ousadia.