Crise das redes Saraiva e Cultura expõe problemas de gestão no setor livreiro

A depender das notícias das últimas semanas, o mercado editorial parece próximo de uma catástrofe —com as duas principais redes de livrarias do país, Saraiva e Cultura, em uma crise profunda, com fechamentos de lojas e dívidas que parecem sem fim.

A Saraiva, líder do mercado, que já acumula atrasos de pagamentos a editores nos últimos anos, anunciou na segunda (29) o fechamento de 20 lojas. Em nota, a rede disse que a medida tem a ver com “desafios econômicos e operacionais”, além de uma mudança na “dinâmica do varejo”.

Na semana anterior, a Livraria Cultura entrou em recuperação judicial —no pedido à Justiça, a rede afirma acumular prejuízos nos últimos quatro anos, ter custos que só crescem e menores vendas. Mesmo assim, diz a petição enviada ao juiz, não teria aumentado seus preços.

O enrosco da Cultura está explicado aí. Diante da crise, a empresa passou a pegar dinheiro emprestado com os bancos —o tamanho da dívida é de R$ 63 milhões, cerca de 25% de sua receita líquida.

Com os atrasos nos pagamentos das duas redes, editoras já promoveram uma série de demissões ao longo dos últimos dois anos.

O cenário de derrocada, contudo, parece estar em descompasso com os números de vendas. Desde o começo do ano, os dados compilados pela Nielsen, empresa de pesquisa de mercado, levantados a pedido do Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livros), mostravam que o meio livreiro vinha dando sinais de melhoras pela primeira desde o início da crise.

No acumulado de 2018, o mercado cresceu 5,7% em número de exemplares vendidos e 9,33% em faturamento. No primeiro semestre, o preço do livro aumentou em média 4,5% se comparado com o mesmo período do ano passado.

Para Simone Paulino, da Nós, editora independente de São Paulo, há um descompasso entre vendas de livros e livrarias. Nas palavras dela, “um paradoxo assustador”.

“A editora nunca vendeu tanto na Cultura quanto nesses últimos seis meses”, diz. E é justamente nesse período que não têm sido pagos.

“O modelo de produção do livro é muito complicado. Você investe desde a compra do direito autoral ou tradução e vai investindo ao longo de todo o processo. Na hora que você deveria receber, esse dinheiro não volta”, diz Paulino.

“Os grandes grupos têm uma estrutura de advogados que vão ter estratégia para tentar receber. E para os pequenos? O que vai acontecer?”

Segundo Paulino, está sendo articulada entre as editoras de pequeno porte uma espécie de coalizão, para que tenham maior poder de pressão.

Para entender essa contradição na qual as vendas crescem e as livrarias penam, vale lembrar que se trata de um crescimento que surge após uma queda que durou anos.

“Não é que o mercado está crescendo, ele está se recuperando”, diz Carlo Carrenho, consultor editorial e fundador do Publishnews, boletim de notícias do segmento.

O que a Saraiva e a Cultura estão enfrentando tem a ver com uma questão mundial, segundo ele, em que “a livraria de rede tem um futuro bem complicado”.

O pedido de recuperação judicial da Cultura ilustra bem essa tese. De acordo com os dados apresentados à Justiça, a receita líquida da empresa encolheu quase 40% de 2017 para cá. O lucro, por sua vez, encolheu em quase um terço.

Ismael Borges, gestor da Nielsen e responsável pela ferramenta Bookscan, também coloca a má fase da macroeconomia brasileira como um dos principais fatores da crise do mercado editorial.

Com a crise, houve queda na venda de livros de entretenimento e cultura, enquanto os voltados para carreira e negócios foram mais visados. 

Os preços dos livros, por exemplo, se analisados no longo prazo, sofreram declínio, diz Borges. Ele dá o exemplo de “O Código da Vinci”, que custava R$ 39,90 há quatro anos. “Uma vez aplicada a inflação do período, o mesmo livro deveria custar algo como R$ 80 [hoje em dia]”, diz. Hoje, o romance best-seller de Dan Brown custa R$ 49,90.

De fato, é queixa constante de editores o fato de o preço do livro não ter sido corrigido de acordo com a inflação ao longo da última década. Nos últimos anos, contudo, as editoras têm pouco a pouco subido o preço, como mostram os números da Nielsen.

Carrenho diz que as causas da crise vão além dos problemas econômicos do país. 

Em comparação com outras indústrias, “o setor editorial está demorando para se modernizar”. Segundo ele, o segmento peca na padronização e organização dos livros, e há constante desperdício de recursos em logística.

Redes de médio porte, como a Leitura e as Livrarias Curitiba, podem não estar no paraíso, mas se encontram em situação mais confortável.

A rede mineira abriu seis lojas em 2018 e fechou duas. Uma das pioneiras em e-commerce, a Leitura iniciou suas vendas online em 1998. Há cerca de três anos, na contramão das outras livrarias, decidiram sair do mercado virtual, após anos de déficit.

A estratégia deles inclui fechar todas lojas que ficam deficitárias por mais de dois anos e abrir novas unidades em locais pouco visados pelo mercado, como Porto Velho (RO), ou mesmo regiões metropolitanas, por exemplo.

Para o diretor da Leitura, Marcus Teles, o fechamento de unidades da Saraiva é “um bom sinal”. Não porque os competidores, em tese, ganhariam mais espaço, mas sim porque a Saraiva finalmente está dando sinais de que está “trabalhando na recuperação dos resultados”, o que é bom para o mercado, segundo ele.

Neste ano, as Livrarias Curitiba não fecharam nenhuma unidade e abriram uma nova, em São Paulo. Entre 2017 e 2018, investimentos da empresa somaram R$ 45,3 milhões, segundo Marcos Pedri, diretor comercial do grupo.

Ao contrário da Leitura, a rede paranaense quer expandir as vendas pela internet. “Ele [o e-commerce] funciona bem. Hoje ele tem o faturamento de uma boa loja física, por isso, queremos expandir o online”, diz Pedri.

“Enquanto a Cultura e a Saraiva estão com problemas, a Leitura e a Curitiba estão crescendo e indo relativamente bem. No estilo ‘come quieto’, a Leitura já é uma rede nacional”, diz Carlo Carrenho.

“E ainda há a Amazon crescendo no Brasil, que tem práticas competitivas muito graves: pagar em dia e responder emails”, ironiza.

Diante do cenário de crise, a maior parte dos editores aposta em uma carta tirada da manga no apagar das luzes do governo Temer —a criação, no país, do preço fixo do livro, nos moldes de boa parte de países europeus, como França e Alemanha.

Um texto, redigido por um grupo de trabalho no Ministério da Cultura, está na Casa Civil, e editores articulam para que a norma seja implantada por medida provisória.

A proposta estabelece que, durante um ano após o lançamento de um título, as livrarias podem dar descontos de no máximo 10% em cada obra. Depois disso, ficam livres para dar o desconto que quiserem.

Os editores se inspiram no pujante mercado europeu. No velho continente, o preço fixo do livro existe desde 1837, quando a Dinamarca criou a sua lei limitando descontos, abolida apenas em 2001.

A crença é a de que a crise atual é em partes causada pela guerra de preço. Unificar o valor de capa permitiria um florescimento das livrarias independentes, uma vez que elas competiriam de forma mais justa com as grandes redes.

Colaborou Maurício Meireles

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