Da arte de desaparecer
"A universidade é um locus de debate. Formamos cidadãos." Em outro contexto, essas palavras do reitor da Universidade de São Paulo, Vahan Agopyan, enunciadas em entrevista desta semana, passariam por uma constatação trivial sem maiores consequências. Hoje, ela expressa uma posição corajosa a respeito da pluralidade e da liberdade inerentes à universidade como projeto.
Essa mudança do peso das palavras denuncia como o Brasil conhecerá, a partir de agora, uma batalha ideológica clara capitaneada pelo seu novo desgoverno.
Ela está apresentada desde o início, com incitações para que alunos denunciem "professores doutrinadores", com a escolha de entregar o Ministério das Relações Exteriores a alguém que se julga em uma cruzada santa contra o "marxismo cultural".
Aqueles que acreditaram que a mesma ideia de "ideologia" havia sido mandada para fora da história terão ocasião de rever em profundidade suas análises nos próximos anos.
De fato, teremos um governo que procurará levar as pessoas a acreditar que o verdadeiro responsável pela crise nacional —por essa crise social, política e econômica que marca o país— não é o sistema financeiro nem a classe política e seus movimentos suicidas. O verdadeiro responsável pela crise nacional é o professor de história. O mesmo que teria minado os fundamentos da família, dos valores pátrios e das grandes conquistas da civilização brasileira.
Contra ele, há de se investir as forças sagradas da redenção espiritual dos trópicos.
Por isso, enquanto o desgoverno que virá bate cabeça para saber o que fazer com a máquina do Estado e terceiriza suas decisões econômicas, usa seu tempo para discutir questões do Enem, para prometer que irá velar nossas crianças contra a "ideologia de gênero". Ou seja, há coisas que o desgoverno não sabe, mas há coisas que ele sabe muito bem e começará a colocar em operação já nos primeiros dias.
Nada disso pode ser compreendido sem levar em conta o tipo de violência que caracteriza o Brasil. Pois o Brasil é, acima de tudo, uma forma de violência. Na verdade, uma violência baseada no desaparecimento.
Aqui, não são apenas os corpos que desaparecem sem deixar marcas —corpos vítimas de genocídios e de uma gestão social da brutalidade. São as classes vulneráveis que desaparecem sendo expulsas do espaço público de visibilidade.
Pois o que significa, por exemplo, lutar contra a "ideologia de gênero" a não ser retirar certos corpos do campo social de afecções, impedir que eles me afetem, permitir que eu possa continuar a viver como se eles não existissem? O debate não é sobre "valores". Ele é sobre práticas de desaparecimento.
Mas essa violência da desaparição é ainda mais profunda. Ela tem como seu espaço natural a história. "Quem controla o passado controla o futuro", escreveu George Orwell em "1984". Veremos como se tratará a partir de agora de fazer desaparecer as lutas que compuseram nossa história, as resistências violentas que nos marcam.
Fazer desaparecer até mesmo uma ditadura corrupta que agora será chamada de "movimento militar" será naturalizada como uma outra forma de governo qualquer.
Tudo isso nos mostra como essa regressão que o Brasil vive é o segundo capítulo de uma história que começou na ditadura militar. Um dos setores que a levaram a cabo tinha o diagnóstico de que o grande erro então foi não ter feito a batalha pela hegemonia cultural, foi ter deixado a hegemonia cultura "às esquerdas".
A ironia de tudo isso é que alguém aqui aprendeu claramente a lição de Gramsci, e não foram exatamente as esquerdas. Trata-se, então, de retomar essa dinâmica do ponto no qual ela foi parada. Daí porque todos os discursos parecem remeter a lutas passadas.
Isso é apenas uma prova de que, como dizia Freud, nunca se vive totalmente no presente. As verdadeiras lutas políticas são lutas de inscrição e disposição. Já se disse uma vez que, nessa forma de conflito, nem os mortos estão salvos.