Da arte de nomear os bois

Ciro Gomes disse no “Jornal Nacional” que Carlos Lupi, presidente do seu partido (PDT) e garantido por ele em sua equipe caso vença a eleição, não é réu. “É réu”, rebateu William Bonner. “Não é réu”, insistiu Ciro.
Fato: Lupi responde a processo por improbidade administrativa numa vara federal de Brasília. Apanhado no contrapé, o candidato, que é formado em direito, invocou uma sutil distinção: a palavra “réu” seria exclusiva da esfera criminal, e a ação contra Lupi é civil.

“O Lupi não é réu em absolutamente nenhum procedimento, como eu falei. Improbidade é civil, não tem nada a ver com crime”, declarou, afirmando que o presidente do PDT deveria ser chamado de “requerido”. 
Do ponto de vista da linguagem, foi o embate mais explícito da campanha até agora. Foi também um ótimo lembrete de como as palavras podem ser usadas tanto para esclarecer quanto para confundir. 

Lupi é réu, sim. Os maiores dicionários de Brasil e Portugal concordam em linhas gerais com a definição do “Aurélio” para o substantivo que herdamos do latim “reus” no século 15: “Indivíduo contra quem se instaurou ação civil ou penal”. Esgrima verbal é assim. A linguagem é um castelo erguido num pântano, cheio de alçapões, quartos de espelhos e passagens secretas. Se nem a busca da verdade numa disputa intelectual rigorosa é ciência exata, ao se apelar à simpatia de um público amplo as estratégias de persuasão matizam o discurso ao infinito. 

É provável que os fãs de Ciro tenham saído do episódio certos de que o candidato deu uma lição de português a Bonner, enquanto quem não gosta dele está convencido do contrário. A isso se chama viés de confirmação. 

Não há dúvida de que o candidato sofismou. Sofisma é um recurso retórico que consiste no uso habilidoso da linguagem para dar fumaças de verdade a uma ideia inconsistente. Mesmo assim, contribui para o aprofundamento do debate que a precisão semântica das palavras seja disputada abertamente por quem tem domínio sobre elas. E Ciro Gomes é, de longe, o candidato de maior destreza verbal nessa disputa.

Pode-se argumentar que o caso do sentido de “réu” é menor, cabelo em ovo, no quadro de uma campanha em que temas como segurança pública e desemprego são feridas abertas. É verdade. Menor, mas revelador. Campanhas eleitorais são feitas no fim das contas de palavras, e palavras se fundam num pacto social. É por meio da crença compartilhada numa ficção que superamos a arbitrariedade essencial de todo signo: o que há em comum entre o animal boi e a palavra “boi”? 

Quando muitos petistas passaram a chamar FHC de “fascista”, a imprecisão era tão gritante que chegava a ser cômica. Poucos atentaram para o risco de uma entropia que terminasse por deixar a palavra impotente quando de fato precisássemos dela. Bois devem ser nomeados com cuidado.

Em momentos de esgarçamento do pacto democrático como o que o Brasil vive hoje, com a polarização exasperada privilegiando propostas de supressão violenta da diferença sobre a negociação, é preciso cuidar para que a linguagem não vire geleia.

Assim como Ciro não decide o significado de “réu”, Jair Bolsonaro não pode negar que é misógino e homofóbico sem insultar as leis da semântica, após ter declarado que mulher feia “não merece ser estuprada” e que “seria incapaz de amar um filho homossexual”. Misoginia e homofobia, que atraem votos, não desaparecem por mágica quando passam a repeli-los. A linguagem exige respeito.

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