Decapitações em Moçambique marcam ameaça islâmica em nova fronteira do gás

Anastacio Talene Nakupenda acordou com o som de tiros quando uma dúzia de homens surgiu da floresta densa para atacar sua remota aldeia em Moçambique, incendiando casas, roubando comida e decapitando um dos moradores.

“Fiquei sem nada, completamente nu”, disse Nakupenda, que é católico, diante de sua casa parcialmente reconstruída em Chitolo, no norte de Moçambique, de onde ele havia fugido para salvar a vida enquanto cinco homens portando machados incendiavam as paredes de barro e madeira.

Inicialmente considerados atos isolados de banditismo, os ataques como o de Chitolo em março estão aumentando. 

Um padrão emergente sugere o potencial início de uma ameaça islamista em Cabo Delgado —uma província pobre na fronteira com a Tanzânia, onde empresas estão desenvolvendo uma das maiores jazidas de gás descobertas na última década.

O grupo adotou o nome de Ahlu Sunnah Wa-Jama, ou “seguidores da tradição profética”. Como o Boko Haram na Nigéria, ele adota uma forma radical de islamismo como antídoto ao que considera um governo corrupto e elitista, que ampliou a brecha da desigualdade.

Desde outubro, mais de cem pessoas foram mortas, frequentemente por decapitação, em 40 ataques diferentes, em aldeias a até 200 quilômetros de distância, segundo o site de notícias local Zitamar.

Os alvos geralmente são aldeias remotas, e os ataques são realizados com machados, mas foram relatados alguns tiroteios e o uso recente de um dispositivo explosivo básico.

Pesquisadores descobriram que a liderança do Ahlu Sunnah Wa-Jama tem ligações com grupos islamistas na Tanzânia, Somália, Quênia e na região dos Grandes Lagos, onde alguns receberam treinamento. 

Sua capacidade até agora é limitada, mas se enraíza em condições que parecem o nordeste da Nigéria há uma década, quando o Boko Haram começou a recrutar jovens irados com a grande desigualdade e a suposta discriminação religiosa.

“É parecido com o início do Boko Haram”, disse o historiador João Pereira, coautor do mais abrangente estudo sobre o grupo. “Todas as condições estão dadas para que a situação se agrave.”

Enquanto o Boko Haram se transformou de um movimento contra o establishment em um dos mais mortíferos grupos islâmicos do mundo, que já matou mais de 30 mil pessoas, o isolamento do norte de Moçambique e a falta de verbas para os militantes são freios à violência, segundo especialistas em segurança.

Mas foi o bastante para os EUA e o Reino Unido desaconselharem viagens à região, no sul da África. 

Vários assassinatos foram relatados a cerca de 20 km da cidade de Palma, onde multinacionais estão desenvolvendo enormes jazidas de gás no país. 

Algumas companhias estão tomando precauções ao desenvolver projetos que envolvem investimentos que deverão totalizar US$ 50 bilhões, mais de quatro vezes o PIB de Moçambique. 

A firma americana Anadarko, que está construindo uma usina de gás natural liquefeito (GNL) perto de Palma, colocou seus funcionários sob “isolamento” devido a temores de segurança, segundo uma fonte do ramo.

A Wentworth Resources, sediada no Canadá, disse que limitou o acesso a seu local licenciado devido à situação de segurança. 

A Exxon e a ENI disseram que estão monitorando de perto a situação.

As empresas pretendem desenvolver o campo de gás offshore Coral, que deverá entrar em produção em 2024. Uma decisão final de investimento sobre uma fábrica de GNL em terra está planejada para 2019.

Foi em Cabo Delgado que a luta pela libertação dos portugueses começou nos anos 1960, com combatentes treinados na Tanzânia e se infiltrando de lá.

Essa vitória, e os espólios de uma guerra civil de 15 anos, permitiram que a Frelimo, partido que poucos muçulmanos sentem que os representa, consolidasse o poder. No entanto, o novo grupo não parece estar ligado a ataques esporádicos nos últimos anos atribuídos aos opositores da Frelimo no tempo da guerra, a Renamo.

Os muçulmanos formam 20% da população total, mas mais da metade dos 2,3 milhões de habitantes de Cabo Delgado. Os mais jovens estão cada vez mais irritados com o que consideram promessas descumpridas de empregos após a descoberta de gás em seu litoral. 

A violência começou em outubro, quando cerca de 30 pessoas atacaram uma delegacia na tranquila cidade pesqueira de Mocimboa da Praia.

Dois policiais morreram e um ficou seriamente ferido quando os tiros cortaram a noite. Buracos de bala ainda podem ser vistos na parede da base e na loja do posto de gasolina vizinho.

Para a maioria dos observadores, o incidente ocorreu sem motivo evidente, mas moradores dizem que tinham advertido as autoridades sobre a radicalização em suas comunidades nos últimos dois anos.

Uma reação militar pesada aumentou o ressentimento.

Os soldados vivem em barracas camufladas na borda de aldeias vulneráveis nos 200 quilômetros entre Macomia e Palma. Em um posto de controle militar, um soldado com sapatos rasgados disse: “Estamos em guerra”. 

As autoridades disseram que não sabem os motivos ou a identidade das pessoas por trás dos ataques e estão restringindo o acesso da mídia à área. Líderes religiosos locais foram instruídos a não falar com os repórteres.

Para conter a inquietação, as autoridades, que até agora reprimiram, devem reparar os laços com comunidades que há muito se sentem ignoradas pelo governo central instalado a 2.500 quilômetros na capital, Maputo, dizem especialistas.

“A reação do governo vai decidir se isso piora ou é resolvido”, disse Saide Habibe, um religioso islâmico que também pesquisa os ataques.

O governo insiste que sua tática está funcionando. Para as autoridades, a grande presença militar está funcionando como dissuasor, apontando a queda no número de ataques em julho. Mas depois de um período de calma parecido no início do ano a violência ressurgiu.

“Estamos combatendo vigorosamente esses assassinos em toda a província. Utilizamos o Exército, os fuzileiros, serviços de inteligência, e estamos contando com a ajuda da população para caçar esses grupos”, disse o porta-voz da polícia Inacio Dina em resposta a perguntas. 

Cerca de 500 pessoas foram presas, várias mesquitas fechadas e uma, onde as autoridades acreditam que ocorria a radicalização, foi demolida. 

A Ahlu Sunnah Wa-Jama divulgou pouco sobre si própria, e ainda não fez exigências confirmadas publicamente, mas pesquisadores dizem que eles querem substituir os ensinamentos mais moderados das mesquitas locais por uma doutrina que rejeita o Estado.

Eles mantêm seus filhos longe das escolas do governo e tentam impor a educação baseada em uma interpretação rígida do Corão, segundo o estudo feito por Habibe e Pereira em maio.

O grupo parece se beneficiar do comércio ilícito de rubis e madeira que movimenta Cabo Delgado.

A distância e o momento dos ataques hoje sugere que há pelo menos duas células, provavelmente mais. Nas aldeias, os combatentes parecem visar as casas de cristãos para incendiar.

Fontes de segurança disseram que uma célula da Ahlu Sunnah Wa-Jama lutava para conseguir munição ou alimentos. A violência cometida por sindicatos de contrabandistas e bandos criminosos também foi erroneamente atribuída ao grupo, segundo as fontes.

Em aldeias como Chitolo, moradores confusos vivem com medo. “Isto é uma guerra. Mas não sabemos quem está atacando, não sabemos por que estamos lutando”, disse Nakupenda. “Eles tentaram me matar, mas Deus me permitiu viver.”

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