Democracia não morre nem sob tortura
Berço da democracia, a Grécia correu sério risco de ser também a sua tumba, pelo menos na Europa. Mas, ao sair nesta segunda-feira (20) da tutela de oito anos da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, esse delicioso país do Mediterrâneo é uma demonstração de que é prematuro o atestado de óbito do melhor dos regimes que o ser humano inventou até agora (ou o menos ruim, ao gosto do leitor).
A tutela da Europa e do FMI veio acompanhada de um rigoroso programa de austeridade, que boa parte dos gregos prefere chamar de “austericídio". Não matou o país, mas feriu-o gravemente.
A economia grega é hoje 25% mais magra do que era em 2007, o ano imediatamente anterior à crise global que fez da Grécia o país mais afetado. Mesmo com expectativas de crescimento forte doravante, em 2023 a economia da Grécia ainda estará 17% abaixo dos níveis de 2007, segundo o FMI.
Não é à toa, portanto, que Yanis Varoufakis, efêmero ministro de Economia que se tornou o mais agudo crítico da austeridade, diga ao The Guardian que o programa adotado pelo país custou à Grécia “duas gerações".
Há mais números a comprovar o estrago:
1. O salário médio real (descontada a inflação) está 22% abaixo do nível de 2009.
2. Em 2007, o ano pré-crise e pré-austeridade, a renda per capita do grego (ajustada pelo poder de compra) era similar à da Espanha, 21% superior à de Portugal e 71% maior do que a da Polônia. Hoje, cada espanhol ganha 40% mais que cada grego, e poloneses e portugueses têm, cada um, renda 9% superior.
A Grécia tornou-se o quarto país mais pobre da União Europeia, depois de Bulgária, Croácia e Romênia.
3. Há 1 milhão de desempregados (ou 20% da força de trabalho, pior, portanto, do que o horrível cenário brasileiro). Entre os jovens, o desemprego bate em estratosféricos 43%.
4. A pobreza extrema pulou de 8,9% em 2011 para 15% em 2015, de acordo com o instituto atenienense Dianeosis.
Que a democracia tenha sobrevivido ante tal desastre surpreende, por exemplo, o deputado independente Harry Theocharis:
"Francamente, é espantoso que, com uma perda de 25% do PIB, não tenhamos perdido igualmente a democracia", disse ao The Guardian.
Evocou, óbvio, a ligação simbólica com a democracia, por ter sido o berço dela e acrescentou que fica “maravilhado todos os dias ao ver como nos arrumamos para manter a fé nela".
De fato, é admirável, mas não dá, ainda, para soltar fogos. A última parcela dos € 290 bilhões (R$ 1,256 trilhão) emprestados pelo FMI e pela UE à Grécia só será paga em 2060, o que significa que o país terá que manter a austeridade orçamentária.
Ou, como resume a revista The Economist: “Agora, a Grécia, que ficou com serviços públicos despedaçados, impostos de fazer chorar, instituições fracas e uma demografia terrível, deve manter grandes superávits primários pelas próximas quatro décadas" (analistas falam em 2,2% do PIB como o superávit médio no orçamento para assegurar a sustentabilidade da dívida).
Aliás, a dívida só fez aumentar no período de austeridade: de 103,1% em 2007, passou em 2017 a 176,2%.A democracia continuará a ser testada, portanto, embora o pico do estresse pareça ter sido superado: a economia cresceu 1,6% no ano passado e deve crescer 2,5% este ano. O desemprego, que chegou a 27%, está em 20%.
A surpresa do deputado Theocharis com a sobrevivência da democracia fica ainda maior quando se sabe que o sistema político conduziu o país a uma escolha de Sofia, como diz a Economist: ou “um devastador Grexit [saída do euro] ou a capitulação aos termos punitivos que os credores exigiram para mantê-la no euro".
A Grécia capitulou. Agora, ao sair da tutela da UE e do FMI, “está pronta para ficar de pé de novo", comemora Pierre Moscovici, comissário europeu para a Economia.
Exagero: a Grécia ainda está de joelhos e muito machucada, mas o modelo que inventou sobreviveu.