Derrotas da esquerda
Há duas categorias de derrota. A primeira, em regimes democráticos, vem de erros e de lentidões políticas que se combinam a demandas sociais vistas como desatendidas, ou que de fato não estão sendo atendidas. Nessa categoria, podemos incluir as eleições recentes no Brasil e no Chile. Já as derrotas disfarçadas de vitórias são outro assunto, e entre elas Venezuela e Nicarágua estão em primeiro plano. Para não falar de Cuba, uma vitória envelhecida, petrificada no tempo e convertida em fardo pesado para a esquerda latino-americana, com seu modelo de partido único, falta de liberdades e pobreza igualitária –e a sedução que imagina-se isso possa exercer sobre a população da América Latina. É difícil decidir se é mais dolorosa a derrota da esquerda democrática ou a vitória da esquerda autocrática. Pessoalmente, acho que a segunda opção dói mais. Uma derrota eleitoral pode ser revertida no próximo pleito; libertar-se de um autocrata (que encarna e na verdade substitui o povo) é uma empreitada mais complexa, que pode durar gerações.
De qualquer maneira, as derrotas da esquerda indicam inadequação (de natureza distinta) ante o momento que o mundo vive. Nos casos da Venezuela e da Nicarágua (com Cuba ao fundo como uma obstinada tentação imitativa), os descalabros camuflados de vitórias vêm da persistente argamassa cultural forjada no século 20 entre o marxismo-leninismo, populismo, nacionalismo exasperado e sucessivos "homens fortes" surgidos para guiar os países rumo a um progresso indefinido. Que nunca aconteceu, nem mesmo em longo prazo, desde que entendamos por "progresso" a consolidação (institucional e cultural) da democracia, em companhia de uma menor segmentação social e um percurso na direção de um bem-estar coletivo maior.
Entre parênteses, é desoladora a analogia vaga, mas persistente, entre os autocratas de esquerda da atualidade e os antigos caudilhos da história latino-americana, pessoas para as quais era inconcebível separar o próprio destino do destino de seus países, separar sua vida privada de sua existência pública. Basta recordar o García Márquez de"O Outono do Patriarca" para entender a profundidade das raízes que ligam presente e passado em diversos pontos deste subcontinente.
A esquerda democrática, por outro lado, foi e tenta continuar a ser um esforço para deixar de lado a tradição dos caudilhos, diante de culturas rochosas e interesses conservadores. Nesse caminho, às vezes surgem vitórias e às vezes derrotas. Quanto a isso se pode mencionar a história recente do Brasil e do Chile, ainda que o ocorrido nos dois países provavelmente tenha razões diferentes. No primeiro a derrota veio da incapacidade de reformar um sistema partidário superdimensionado que terminou por obrigar primeiro Lula e depois Dilma Rousseff a pactos que favoreceram a corrupção, gerando a percepção social da política como um mercado de compra e venda de bens, empregos públicos e mordomias variadas.
Ao mesmo tempo, contentar tantos aliados no Congresso significou renunciar a reformas, entre as quais algumas no campo agrário. Poder governar significou, para a esquerda brasileira, se adaptar às tradições do clientelismo, que terminaram por corroer seu prestígio e sua credibilidade. As alianças políticas foram tão essenciais quanto mortíferas, no Brasil. E isso sem mencionar a pulsão corrupta do próprio Partido dos Trabalhadores. Que o presidente mais amado da história do Brasil esteja agora encarcerado conduz a reflexões amargas. No Chile, entre escândalos na família Bachelet, mal-estar dos moradores urbanos marginalizados e estudantes universitários que se sentiam discriminados, o desgaste dos socialistas se provou irreversível. Sem esquecer, naturalmente, que a classe média e a classe alta do Chile estão entre as mais conservadoras da região.
Mas é preciso convir em que essas razões não são mais do que contingentes. Se estendemos nosso olhar, as dificuldades de governo da esquerda democrática são muito maiores: como criar empregos bem remunerados em um planeta globalizado onde sempre existe alguém disposto a fazer o mesmo trabalho por preço mais baixo? Como superar (na cultura e na realidade) segmentações sociais seculares? Como promover a produtividade e a inovação tecnológica quando o lucro de muitas empresas se deve ao baixo salário dos trabalhadores ou a faturamento protegido politicamente? Como superar a praga da corrupção na administração pública, que solapa o potencial de progresso de qualquer política pública? Com que alianças políticas se pode delinear um caminho que conduza a avanços significativos, nesse terreno? Ao redor dessas questões, o debate, a elaboração de ideias e a busca de coalizões internacionais continuam a ser fracos, em nossa e em outras regiões do planeta.
Paradoxalmente, estamos entre dois polos: de um lado, uma esquerda democrática insegura e mais preocupada com o sucesso eleitoral no próximo pleito do que com a construção de programas inéditos e acordos sociais duradouros, e do outro uma esquerda iliberal para a qual todas as respostas já estão estabelecidas em um passado de verdades inoxidáveis em que reluzem imperecíveis as figuras de Marx, Perón, Bolívar, ou seja lá o que for que corresponda a elas nos mitos patrióticos nacionais. O eterno fascínio pela substituição de importações e por uma indústria sob controle público.
Enquanto isso, nos lugares em que a esquerda autoritária governou ressurgem direitas agressivas, com pouca ou nenhuma consideração pelas normas democráticas que o mundo vem estabelecendo laboriosamente (e não sem retrocessos periódicos dramáticos) desde a Revolução Francesa. Depois da União Soviética vem Putin, como demonstração de que Estados autoritários não preparam sociedades de cultura democrática. E é melhor não citar a Polônia, Hungria ou os nacionalismos étnicos da antiga Iugoslávia. De uma coisa podemos estar razoavelmente seguros: o dia em que caírem os regimes "socialistas" de Cuba e da Venezuela será o dia em que florescerão nesses países diversos Bolsonaros em versões nacionais.
Sejamos brutalmente honestos: a América Latina jamais foi o Novo Mundo - entre latifúndios, caudilhos e segmentações sociais duras. E apesar de alguns progressos aqui e acolá, continua a não sê-lo. As novidades mundiais não surgem aqui. E é mais que evidente que precisamos de novidades, e de uma esquerda capaz de alimentá-las, em um mundo que continua a acumular deterioração ambiental potencialmente catastrófica, em um mundo no qual a distância entre ricos e pobres só aumenta, em um mundo que produz migrações históricas e retrocessos culturais que levam personagens inverossímeis como Donald Trump, Jair Bolsonaro ou Jimmy Morales à presidência de seus países. Uma feira do transtorno coletivo.
Uma esquerda capaz de enfrentar os desafios de uma modernidade frenética jamais foi tão necessária (especialmente na América Latina). Apesar de tudo, uma parte nem tão pequena da esquerda regional continua aprisionada entre resíduos persistentes de Lênin e Perón: uma mistura fatídica de positivismo autoritário e messianismo ególatra. E, do outro lado, uma esquerda liberal que demora demais a gerar ideias e projetos a um só tempo radicais e democráticos.
Uma coisa é certa: o capitalismo, na forma em que se apresenta atualmente, cria riscos ambientais e sociais insustentáveis. E se bem seja verdade que não se vê coisa alguma no horizonte que possa substitui-lo, também é verdade que chegou o momento para mudanças profundas que reduzam o peso das finanças na economia mundial, revertam a tendência de segmentação social e abram as portas para experiências de novas formas de equidade, nos países e nas relações entre eles.
Dois exemplos: hoje, a África tem 1,2 bilhão de habitantes, e dentro de 30 anos sua população vai dobrar. Quem administrará os fluxos migratórios de um continente superpovoado, ambientalmente degradado e tomado por delírios religiosos, se não houver desde agora uma ação mundial de apoio ao seu desenvolvimento? Enquanto isso, na América Latina, assistiremos a um envelhecimento acelerado da população, o que gerará dificuldade ainda maior para manter os serviços sociais, já escassos e de baixa qualidade. Sem exagero, deveria ser evidente para qualquer pessoa dotada de bom senso que o capitalismo chegou a uma etapa de seu percurso histórico na qual ou aceita mudanças fisiológicas fundamentais ou aproximará a humanidade de uma era de caos e conflitos com consequências potencialmente catastróficas.
E considerando que as direitas de muitas partes do mundo estão entregues há bastante tempo à contemplação das maravilhas do progresso tecnológico e da globalização, cabe à esquerda democrática a maior parte do trabalho de organizar ideias e pressões sociais para promover as mudanças imprescindíveis. Mas, por enquanto, os sinais disso são escassos, e o tempo vem correndo mais rápido que nossa capacidade de fazer frente aos problemas que ele traz.
Ugo Pipitone é economista italiano radicado no México. Trabalhou também no Chile e no Peru. Professor e pesquisador do Centro de Investigación y Docencia Económicas, CIDE. Autor de duas dezenas de livros, entre os quais "La Salida del Atraso", "El Temblor Interminable: Un Eterno Comienzo", e "La Esperanza y el Delirio. Una Historia de la Izquierda en América Latina".
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Tradução de Paulo Migliacci