Desastres naturais: é isso mesmo?
Os últimos meses têm submetido os brasileiros a intenso calor e chuvas torrenciais, a exemplo do que aconteceu em São Paulo recentemente. No que tange ao calor excessivo, o uso de ar-condicionado não tem sido suficiente para atenuar as altas temperaturas e representa uma enorme demanda de energia, sem que haja certeza da capacidade da nossa infraestrutura em garantir o respectivo aumento da demanda.
As chuvas torrenciais provocam mortes por soterramento e algumas pessoas desaparecem afogadas por força das águas. Nesse cenário sinistro constata-se um relevante sentimento de impotência diante desses “desastres naturais” e, com o fim do período das chuvas, tudo volta ao normal como se fossem meras “chuvas de verão”.
As reportagens televisivas, por sua vez, repetem um novo jargão: “choveu hoje o equivalente a todo o mês de março”. Quer dizer que estamos diante, inequivocamente, de uma mudança radical do ciclo hidrológico, de modo que chuvas intensas, em tempo curto, passaram a ser parte de nosso cotidiano. Porém, torna-se necessário apontar que estas mudanças radicais estão associadas ao aquecimento global e às mudanças ambientais locais e regionais. O IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), há muitos anos, cuida, com rigor científico, dos impactos adversos da mudança do clima, notadamente no ciclo hidrológico e no aumento dos denominados eventos climáticos extremos.
Estas preocupações se traduziram em legislações específicas que definem obrigações na mitigação (redução dos gases efeito estufa) e também na adaptação, reconhecendo que a mudança do clima, do ponto de vista legal, exige que o poder público assuma suas responsabilidades em termos muito concretos. Há uma percepção equivocada de que a redução de GEE (gases do efeito estufa) dependeria, fundamentalmente, de compromissos internacionais, a exemplo do Acordo de Paris, firmado em 2015. Trata-se de um erro grosseiro imaginar que antes de agir poderíamos nos dar ao luxo de aguardar que os outros fizessem a sua parte.
As tragédias recentes demonstram que estamos, criminosamente, deixando de nos preparar para os grandes impactos em curso do aquecimento global, em que pese a existência de planos de adaptação, que servem, unicamente, para “inglês ver”. Associa-se a isso o deliberado descaso com o meio ambiente de maneira geral, permitindo-se, demagogicamente, a ocupação de encostas e margens de rios, deixando as cidades desprovidas de infraestrutura mínima para enfrentar os ditos “desastres naturais”. Ao contrário, continuamos a impermeabilizar, em grandes extensões, o solo, suprimimos fragmentos florestais que estabilizam as encostas e impedem o agravamento das enchentes e inundações e “autorizamos” a ocupação de áreas de mananciais em todo o Brasil pelo crime organizado.
Temos que encarar a mudança do clima e a degradação ambiental como itens obrigatórios da agenda brasileira, com o poder público passando a levar a sério suas obrigações constitucionais e a sociedade, por sua vez, deixando de considerar as tragédias como meros e inevitáveis desastres naturais.
Passou a época em que o aquecimento global era considerado preocupação do futuro e desprendida do cotidiano dos brasileiros. De um lado, cuidar dos prejuízos e perdas das tragédias e, de outro, fazer o que é preciso para que, no próximo verão, não tenhamos uma reprise em preto e branco, absolutamente previsível, do que tem ocorrido no Brasil e no mundo.