Despautérios
É rico o vocabulário do espanto e da revolta com tudo que contraria o que julgamos lógico, sensato, razoável. Que absurdo, podemos exclamar, mas em sua centésima aparição a palavra estará cansada, parecendo insuficiente para definir tamanho... tamanho...
Não faltam opções, e ultimamente temos lançado mão de quase todas: disparate, desatino, aberração, porra-louquice, despropósito, asneira, maluquice, contrassenso, tolice, insensatez, irracionalidade, besteirol, desvario, delírio, quimera, patacoada.
Cada nova palavra dá conta por algum tempo de expressar o tom exato de pasmo e fúria que requerem de nós as absurdidades e alogias, os desconchavos e dislates. As virtudes terapêuticas de um vocabulário multicolorido ainda não foram devidamente estudadas pela neurolinguística.
Acontece que até um glossário rico acaba por se esgotar quando é muita a doidaria. Se a riqueza acumulada pelos dicionários ao longo dos séculos prova que agressões ao bom senso nunca estiveram em falta no repertório humano, hoje está nítido que certas épocas capricham mais que outras no despautério.
Despautério, pois é. Assim chegamos finalmente a um dos bichos mais curiosos da lista onde figuram tantos vocábulos respeitáveis e tristemente atuais. Se o termo está longe de ser o mais corrente da sua turma de sinônimos, vejo nele duas vantagens: uma sonoridade afeita à comédia e uma história divertida.
Sua etimologia é tão pitoresca que parece uma daquelas lendas saborosas, mas inteiramente isentas de verdade, que fazem sucesso na internet e em livrinhos sobre a origem das palavras. Como a de que "larápio", sinônimo de ladrão, provém do nome de um juiz romano corrupto, L.A.R. Appius. Não há fumaça de registro histórico desse sujeito: tudo indica tratar-se de um despautério.
Já a historinha brejeira sobre a origem de despautério é, como diria Nelson Rodrigues, batata. A palavra vem a ser o sobrenome aportuguesado do autor de uma influente gramática latina do século 16, "Comentarii gramatici", tomado ao latim Johannes Despauterius ou, mais provavelmente, de segunda mão ao francês Jean Despautère. No registro civil, João Despautério, que era flamengo, chamava-se Jan van Pauteren.
Sua gramática foi muito lida na Europa nos séculos 16 e 17, mas Despautério passou à história com a fama de gramático enrolado e dado a escrever besteiras. Essa má reputação levou seu nome a estrear como substantivo comum num dicionário de português, já em fins do século 19, com o sentido de dito ou ação absurda.
O destino pode ter sido injusto com o erudito flamengo. O filológo brasileiro Silveira Bueno, citando a enciclopédia Larousse, diz que ele tinha muitos méritos, mas, de estilo "difuso, obscuro e cheio de declamação", caiu em desgraça quando o padre francês Charles François Lhomond lançou em fins do século 18 uma gramática mais simples e objetiva.
Superado em sua especialidade, o palavroso Despautério virou uma espécie improvável de super-herói. Sua herança vocabular é de grande utilidade nesse momento difícil em que as palavras tentam nomear as coisas —como têm absoluta obrigação de fazer— e acabam tantas vezes tombando exaustas, impotentes diante da kriptonita de uma realidade destrambelhada.
Da próxima vez que um absurdo quiser passar por normal diante do seu nariz, experimente gritar com todas as forças: "Despautééériooo!" Você pode se surpreender.