Dia de idílio em Montevidéu vira pesadelo em romance

Há um costume peculiar entre os argentinos que, ao longo das últimas décadas, normalizou-se como parte da cultura cotidiana, o de não confiar em seu sistema bancário. As razões são históricas e passam pela hiperinflação dos anos 1980 e o "corralito", de 2001, que impediu que as pessoas retirassem dinheiro de suas contas.

Por causa disso, surgiram anormalidades que cabem mais a um anedotário, mas que são parte da vida cotidiana do portenho e de quem vive lá. Por exemplo, é comum que se guarde de pequenas a grandes quantias em dólares debaixo dos colchões ou no fundo de armários.

Também não se usam com frequência os cartões de crédito —ou porque o comerciante não quer esperar os dias até receber a quantia, que terá desvalorizado, ou porque o cliente não quer pagar as taxas bancárias necessárias para se ter um.

 

Nos últimos tempos, com as desvalorizações constantes do peso, disseminou-se amplamente um outro costume: o de abrir contas no Uruguai, onde a economia é mais estável e os bancos possuem regras um tanto mais flexíveis.

As taxas são baixas, a necessidade de apresentar documentos é pequena e, o melhor, se você está por receber um valor do exterior, em dólares, este cai na sua conta rápido e quase que na íntegra —sem descontos abusivos e sem muitas perguntas sobre sua proveniência.

Hoje em dia, guardam dinheiro no Uruguai desde desde escritores que realizam trabalhos para fora até empresários que querem defender suas fortunas da montanha-russa que costuma ser o sistema cambiário argentino.

O que isso provoca, porém, é outra situação peculiar, a do cidadão comum que, ao optar por essa via, tem de separar um dia na semana ou no mês para ir à capital uruguaia, do outro lado do rio da Prata.

É nesse espaço de tempo de um dia que o escritor fictício criado pelo argentino Pedro Mairal, 47, vive a história de "A Uruguaia", sucesso de crítica e público na Espanha, na Argentina e no Uruguai —e que acaba de sair no Brasil.

Na Argentina, sobressai-se a história desse portenho mimado de 44 anos que sofre nas mãos do sistema bancário local, das mulheres, do casamento, da "agonia de ser argentino", como diz Mairal, em entrevista à Folha.

Já no Uruguai o livro encantou por mostrar uma visão carinhosa do país, segundo o próprio autor. "Os uruguaios geralmente pensam que vamos lá por suas praias, pelo dinheiro, que somos algo aproveitadores, e acho que, no livro, mostro uma Montevidéu diferente, menos idílica, mais real."

De fato, o que motiva o personagem a fazer a viagem não é apenas buscar os US$ 15 mil que lhe mandariam da Europa por trabalhos como escritor, mas também se encontrar com Magalí Guerra, que havia conhecido há mais de um ano, num festival literário, e com quem havia mantido uma platônica relação apenas virtual desde então.

"A frustração parte também dessa idealização que ele tem dela, que nós argentinos temos de que o Uruguai é uma terra que dominamos porque se parece com Buenos Aires, mas que tem uma dinâmica muito própria. E, é claro, um sujeito com essas características que descrevo vai metendo os pés pelas mãos."

Depois de buscar os dólares e guardá-los de forma desajeitada debaixo da roupa, o protagonista vai narrando a história com culpa, como se a estivesse contando à mulher.

As horas passam entre a espera do encontro com Guerra, a mulher amada/idealizada, e a transformação do que era um dia de idílio num de violência e de abandono.

Seu formato de narrativa curta, em que tudo acontece nesse fatídico dia, dá ao livro um tom de suspense em que a empatia pelo personagem vai crescendo na mesma medida em que o leitor vai antecipando as pequenas tragédias que estão por vir.

"A ideia também era ir metendo no texto pequenos ensaios sobre a paternidade, sobre o casamento, sobre a ideia de traição e de monogamia, sobre a 'argentinidade', sobre o falso espelho que pensamos que é Montevidéu. E jogo meu personagem ali, despreparado para tudo."

Questionado sobre esses temas serem tabus na argentina, Mairal menciona a monogamia como tabu universal. "Podemos nos livrar do matrimônio, incorporar as questões de gênero e homossexualidade com grande naturalidade e rapidez, mas, ainda assim, a monogamia, a ideia de exclusividade é algo de que não queremos abrir mão."

A mulher dele, claro, leu o livro. "Ela me conhece, não senti que haveria problemas, embora tenha percebido mísseis imaginários passando a centímetros da minha cabeça."

O tom confessional é tão marcante que a pergunta sobre se tudo aquilo aconteceu de verdade com ele é inevitável. Ele se esquiva e diz: "Algo sim". Críticos e leitores, inclusive, o compararam a Karl Ove Knausgård, o norueguês que transformou sua vida numa experiência literária.

"Eu gosto de sua obra, mas não vou a esse nível de detalhe a que ele chega. Há em comum essa busca do romance moderno que voltou a fazer com que o autor se volte mais a seu mundo interior, é uma característica dos nossos tempos, não contamos tanto as façanhas mas o que nos passa por dentro. E, definitivamente, meu personagem tem muito de mim, mas não sou eu, como em Knausgård."

Ele afirma, no entanto, que não foi fácil explicar isso nem mesmo para sua mulher e sua família. E que teve de armar um almoço para parentes para dizer que não tinha tido uma aventura amorosa no Uruguai e que não estava pensando em se separar.

A Uruguaia

Autor: Pedro Mairal. Trad.: Heloisa Jahn. Ed. Todavia. R$ 49,90 (128 págs.)

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