Discernimento e rigor
Poucos meses antes de minha saída do jornal, soube do mal que acometia Otavio Frias Filho. A notícia veio de chofre e assustadora: o estado dele já era grave. Sabia, todos sabíamos, que chegaria prematura a indesejada das gentes, aquela que o poeta Manuel Bandeira, nos seus conhecidos versos, dizia não saber se dura ou caroável.
Para quem, como eu, vivenciou o câncer a assoberbar um ente querido, a notícia trouxe consternação e lembranças tristes. Em 1990, era minha mãe, também aos 61 anos de idade, a ir-se precocemente de nós, deixando uma enorme lacuna que, com o tempo, foi sendo preenchida pelas lembranças e valores que herdamos dela.
Nos quase 18 anos em que estive na Folha como consultora de língua portuguesa, foram esporádicas as ocasiões em que estive com Otavio – em todas, fosse para consultar uma etimologia, fosse para sugerir temas ao meu boletim diário de língua portuguesa, ele fazia questão de estabelecer uma relação muito respeitosa.
Em meio a suas muitas responsabilidades, Otavio não raro tropeçava em uma regência incorreta ou em um pronome “lhe” no lugar de “o” (e vice-versa) e pedia que aquilo integrasse o boletim interno. Também não gostava de certos modismos de linguagem ou dos clichês, sempre tão fáceis de encontrar na memória.
À sua maneira (discretíssima), dava seu aval a um trabalho que, bem sabia, requeria para além da persistência e da paciência da repetição, o cuidado e a responsabilidade com cada pormenor.
A exigência quanto à qualidade e quanto à correção dos textos foi sua preocupação constante. Não à toa, a Folha à qual cheguei em outubro de 1999 já tinha ombudsman, Manual da Redação, controle de erros, consultoria de língua portuguesa – isso sem falar na seção “Erramos”. O espírito de busca incansável da excelência será talvez o maior legado de Otavio.
Considero única a experiência que adquiri no jornal, no convívio com a Redação, no enfrentamento de questões nada óbvias (afinal, tudo passa pela forma de exprimir o pensamento), tudo isso possível graças ao ambiente de liberdade, companheirismo e respeito que não o seria se não fosse esse o espírito da liderança.
Mesmo sem muito contato direto com ele, sempre soube de sua confiança em meu trabalho, que ele, certa vez, disse admirar “pelo discernimento e rigor profissionais”, palavras que guardo com carinho e respeito, mas que, na verdade, com mais justeza se aplicam a ele próprio.
No ensaio “O Abismo”, com que encerra seu livro “Queda Livre”, ele se pergunta: “Quem ainda não imaginou a própria morte, quem nunca especulou sobre o próprio enterro?”.
A pergunta, retórica, enseja o relato de seus (e também nossos) devaneios melancólicos:
Quando essas visões me vinham à mente, eu costumava prolongá-las para ver aonde iam dar. Pensava nas pessoas se dispersando após a cerimônia, talvez para cumprir o ritual de quase todas as culturas que manda comer após sepultar alguém, numa celebração antropofágica destinada a reafirmar os direitos da vida sobre a morte. Fantasiava depois alguns retardatários conversando animadamente ao final de uma missa – e a partir desse ponto minha memória entre os vivos começaria a desvanecer aos poucos, episódios seriam descritos de forma deturpada pelo esquecimento, meu nome seria cada vez menos pronunciado, meu aniversário lembrado por um número minguante de pessoas. Quanto tempo demora para que todo vestígio deixado por alguém desapareça da face da Terra?
Certamente, seus vestígios ficarão por muito tempo neste planeta, inscritos em seus textos, no jornal a que dedicou sua vida e em todos aqueles que com ele um dia conviveram e levarão adiante sua memória. E, se a lembrança de algum episódio da vida vier a ser deturpada, que não o seja pelo esquecimento, mas pelo rearranjo afetivo, que, com o tempo, seleciona e emoldura as melhores emoções.