Dizem que matar negro é adubar a terra, afirma ex-árbitro de futebol
O gaúcho Márcio Chagas da Silva, 42, se cansou de ouvir ofensas racistas. Ex-árbitro, ele lembra os xingamentos que recebeu dentro e fora dos gramados, e que continuam hoje, quando trabalha como comentarista de arbitragem da Globo. Além disso, revela que a falta de amparo da federação gaúcha o levou a largar o apito.
Um dia meu filho de cinco anos me perguntou por que os pretos dormem na rua e são pobres. Expliquei que é um resquício da escravatura, que estamos tentando mudar isso, mas que é difícil. Não sei se ele entendeu. Às vezes nem eu entendo. Sendo negro em um estado racista como o Rio Grande do Sul, eu me acostumei a ser o único da minha cor nos lugares que frequento.
Fui o único negro na escola, o único namorado negro a frequentar a casa de meninas brancas e, como árbitro, o único negro apitando jogos no Campeonato Gaúcho. Hoje sou o único negro comentando esses jogos na TV local.
Durante muito tempo, me calei ao ouvir alguma frase racista. Engolia, como se não fosse comigo. Mas era comigo. A verdade é que estou puto com os racistas. Todo fim de semana escuto gente me chamando de preto filho da puta, macaco, favelado. “Matar negro não é crime, é adubar a terra”, eles dizem. Estou de saco cheio dessa história.
A galera saiu do armário total, não tem vergonha nenhuma. As manifestações racistas estão vindo cada vez mais ferozes e explícitas. O fato de eu estar na TV agride muito mais as pessoas do que quando eu apitava. O racista não aceita que você ocupe um espaço que você não deveria ocupar.
Dá vontade de sair na mão com esses caras, mas sei que se eu fizer isso perco a razão.
Em um Avenida x Internacional, em Santa Cruz do Sul, o juiz marcou um pênalti que não aconteceu e eu comentei que o pênalti não aconteceu.
Um torcedor foi no meu Instagram e escreveu: “Não gosta de ser chamado de preto, mas tá fazendo o quê aí?” O que tem a ver a minha cor com o meu comentário? Outro cara me chamou de “crioulo burro” e um terceiro disse que, se pudesse, me enfiaria uma banana no rabo. Os caras escrevem isso em público, com nome e sobrenome. Já acionei o Ministério Público.
Caxias do Sul, para mim, é uma das cidades mais terríveis para trabalhar. Há algumas semanas, fui transmitir um jogo no estádio Alfredo Jaconi e passei uma tarde inteira ouvindo xingamentos.
Tive que ouvir que era um preto ladrão, que estaria morrendo de fome se a RBS, a Globo local, não tivesse me contratado, que eles tinham trazido banana pra mim. A cada cagada que o árbitro fazia em campo, eles se voltavam contra mim na cabine e xingavam.
Um dia, em um Juventude x Internacional, a arbitragem estava tendo uma péssima atuação. Houve um pênalti não marcado para o Juventude, e uns torcedores que ficavam perto da cabine se viraram para mim dizendo coisas como: “E aí, preto safado, vai falar o quê agora?”.
Eu já tinha dito no ar que o juiz tinha errado ao não marcar o pênalti. O clima já estava pesado desde o começo, e eu me segurava para não descer lá e ir pro soco, mas é tudo que eles querem, não é?
Quando essas coisas acontecem, os colegas brancos dizem para eu deixar pra lá, que eu sou maior que isso, que estamos juntos, que bola pra frente. Juntos no quê? Deixar pra lá como? Quem sente a raiva e o constrangimento sou eu. Como “estamos juntos”?
Depois de muito tempo ouvindo esse tipo de coisa, eu desenvolvi uma forma de defesa, que também é uma forma de ataque. No final do jogo, quando um cara disse que tinha trazido uma banana (“porque eu sei que tu gosta”), eu falei que gostava mesmo. “Já brinquei muito de banana com tua mãe.” Os amigos dele riram, e o cara saiu com o rabo no meio das pernas.
Tem um motivo de eles sempre se referirem a bananas quando querem me agredir.
No dia 5 de março de 2014, o Esportivo jogou contra o Veranópolis, em Bento Gonçalves, uma cidade perto de Caxias, também na serra gaúcha. Essa é a região mais racista do estado. Logo que saí do vestiário ouvi gritos de “macaco”, “negro de merda”, “volta para a África” e “ladrão”. Falei para os meus colegas: “Se nem começou o jogo e os caras já estão assim, imagina no final.”
Acabou a partida. Jogando em casa, o Esportivo venceu por 3 a 2, e não teve nada anormal: nenhuma expulsão, nenhum pênalti polêmico, lance de impedimento controverso, nada. Mesmo assim, os torcedores se postaram na saída do vestiário para me xingar.
A uma distância de uns dez metros, questionei um senhor que estava acompanhado pelo filho: “É isso que você está ensinando pro seu filho?”. Ele disse: “Vai se foder, macaco de merda.” “Uma ótima semana pro senhor também”, respondi e desci ao vestiário. A polícia não fez menção de interpelar os torcedores, mas registrei os xingamentos na súmula.
Tomei meu banho, esperei meus colegas e saí do vestiário para pegar meu carro, que estava em um estacionamento de acesso restrito à arbitragem e funcionários dos clubes. Encontrei as portas do carro amassadas e algumas cascas de banana em cima.
Ao dar partida no carro, ele engasgou duas vezes. Na terceira tentativa, caíram duas bananas do cano de escapamento. Alguém colocou duas bananas no cano do escapamento. Meu colega Marcelo Barison ficou horrorizado.
Voltei revoltado para o vestiário. O atacante do Esportivo Adriano Chuva, negro, me pegou pela mão e me levou um pouco mais afastado. Ele disse que ali aquilo era normal.
“Você tem que ver o que eles fazem com a gente no centro da cidade.” Ele dizia que os negros do time preferiam jogar fora de casa para não ser chamados de macaco no próprio estádio. Ao chegar em Porto Alegre, refleti sobre o que deveria fazer. Encaminhei texto para uns jornalistas que eu conhecia, e o caso veio a público.
Francisco Novelletto, o presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), me ligou, dizendo que eu deveria tê-lo procurado antes de falar com a imprensa, porque a denúncia estava prejudicando a imagem do campeonato. Ele disse que poderia pagar para consertar meu carro.
“Não quero seu dinheiro, quero respeito”, lembro de ter dito. Novelletto também sugeriu que se eu continuasse com a denúncia poderia prejudicar minha carreira. Eles fazem essa chantagem. Continuei com a denúncia.
No Superior Tribunal de Justiça Desportiva, o Esportivo perdeu três pontos por causa desse jogo e acabou rebaixado no campeonato. Até hoje, quando querem me atacar, os racistas dizem que fui eu quem rebaixei o clube. Mas eu não rebaixei ninguém. O que eu fiz foi denunciar o ataque absurdo que sofri. O clube nunca entregou a pessoa que colocou as bananas no carro.
Ao longo do processo, me senti desamparado e desvalorizado pela federação. Eu tinha 37 anos e era aspirante à Fifa, imaginava que ainda podia ter uma carreira internacional. Mas, por causa desse episódio, fiquei tão de saco cheio que resolvi largar o apito. Apitei a final e parei. Até hoje, não posso pisar na federação. A federação nunca mais teve um árbitro negro.
Na esfera cível, processei o Esportivo por danos morais. Durante o julgamento, o advogado deles debochou do racismo que sofri no estádio.
“Chamar negro de macaco não é ofensivo”, ele disse. “Ofensivo é amassar o carro porque, como diz a propaganda do posto Ipiranga, todo brasileiro é apaixonado por carro.” Essa frase me fez decidir abandonar o futebol. Em janeiro deste ano, o Tribunal de Justiça do RS condenou o clube a me pagar R$ 15 mil. Até hoje não pagaram.
Eu refleti muito antes de vir aqui contar tudo isso. No futebol, existe uma tendência ao silenciamento quando o assunto é racismo. Muito jogador negro que passa por isso prefere ignorar os ataques temendo ter problemas na carreira. Outro dia, um jogador saiu de campo na Bolívia. Todos deviam fazer o mesmo, principalmente os medalhões.
Posso até me prejudicar no trabalho, mas resolvi comprar a briga porque, nos fóruns que reúnem negros, costumamos dizer que os racistas podem fazer duas coisas: ou eles nos matam ou eles nos adoecem.
Eu me recuso a morrer ou adoecer. Prefiro lutar. Quando esses ataques acontecem, minha mulher, que é negra, me dá a força que ela consegue. Ela sabe muito bem o que é isso. Meus filhos ainda não sabem. Eu fortaleci a consciência da minha negritude principalmente pelo rap, ouvindo música, analisando aquela letra e me identificando com aquela situação retratada.
Os racistas não sabem, mas eles só fortaleceram minha consciência racial. Eu falo pro meu menino que ele é lindo. Enalteço o nariz e o cabelo “black power” dele, digo para ele sempre valorizar a negritude que ele tem. Minha filha tem dois anos e vou procurar fazê-la ter orgulho de si mesma, assim como eu tenho da nossa raça. Minha briga é por mim, mas também por eles. Os racistas não vão nos matar.
Presidente da federação diz que críticas são injustas
O presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Francisco Novelletto, disse que não deixou de apoiar o árbitro no episódio de racismo em 2014.
“O Márcio está faltando com a verdade”, afirmou Novelletto. “Quando soube do fato, liguei para ele em um gesto de grandeza para saber o que tinha acontecido. Ele me narrou uma versão ‘super light’ dos fatos e tirou toda a culpa do Esportivo. No dia seguinte, para minha surpresa, apareceu dando entrevista chorando na TV e se dizendo indignado. Achei isso estranho.”
Segundo Novelletto, a federação lançou uma nota de repúdio contra o Esportivo e iniciou uma campanha no seu site de combate ao racismo. De acordo com o cartola, as ofensas que Márcio Chagas sofre são consequência da briga que ele comprou com o clube.
“Eu, se fosse patrão dele, não mandava ele para trabalhar nessas cidades, você sabe como torcedor é.”
Para o cartola, não é papel da federação defender o árbitro porque “ele é um prestador de serviço”. “E os donos da federação são os clubes”, disse.
Presidente do Esportivo desde 2017, Anderson Vanela disse que o clube não faria maiores comentários sobre o episódio de 2014. Para ele, “o assunto ficou no passado.”
“O clube acata a decisão judicial, mas não concorda. A cidade se machucou muito, a comunidade inteira sentiu. Bento Gonçalves é uma cidade turística, que acolhe a todos e não tem em seu histórico qualquer tipo de ato racial”, afirmou Vanela.
O Esportivo já fez o depósito de R$ 15 mil a título de reparação para Márcio Chagas.