Eles nos expulsaram como cachorro, diz imigrante venezuelana em Roraima

Yineth Manzol, 26, não sabe para onde vai com as três filhas. A mais velha tem 7 anos, a do meio, 5 e a caçula, no colo, 10 meses.

Quando a família estava abrigada em um terminal em Pacaraima, no sábado (18), um grupo de brasileiros chegou com paus e pedras agredindo quem encontrasse.

“Agarravam os meninos e os agrediam. Batiam nos pais. Atiravam pedras, telhas. Batiam na cabeça”, conta. “Pegaram nossa comida e nos expulsaram como se fôssemos cachorro. Quem estava no banheiro [e não pode fugir] ficou sem nada.”

Manzol é uma dos mais de 1 milhão de venezuelanos que fugiu da escassez de comida e remédios e da hiperinflação do regime de Nicolás Maduro. Destes, estima-se que 130 mil tenham vindo ao Brasil, dos quais metade ficou no país.

A maior parte está em Roraima, estado fronteiriço onde fica Pacaraima, uma cidade de 12 mil habitantes (a maioria deles fora da diminuta zona urbana) que recebe a maior parte dos recém chegados. Pacaraima, segundo o Censo, tem Índice de Desenvolvimento Humano igual ao do Iraque.

Nas ruas onde o saneamento chega para apenas 21% da população, a tarde de sábado foi tomada por gritos convocando moradores a se unirem e saírem pela cidade atrás de venezuelanos.

Os gritos eram alimentados pelos relatos, ouvidos ou lidos no WhatsApp, de que o comerciante Raimundo Nonato fora espancado e roubado por ladrões supostamente venezuelanos na véspera.

O que se seguiu depois é o que Yineth Manzol descreve: “Queimaram a tenda, as coisas que a gente guarda, não deixaram nada”.

A operação de acolhida organizada pelo Exército brasileiro na cidade, onde de 2.000 a 3.000 pessoas estavam dormindo em tendas nas ruas segundo a igreja local, precisou ser encerrada às pressas. Quem estava sob as tendas, esperando a triagem e a documentação, teve que sair correndo e cruzar a fronteira.

Para permitir que passassem, o Exército fez um cordão de isolamento, irritando os brasileiros no local, que, entre estrofes do Hino Nacional, chamavam  os militares de “periquitos verdes.

O Exército estima que 1.200 venezuelanos tenham conseguido sair dessa forma, mas não se sabe quantos mais recuaram até que os brasileiros fechassem o acesso à cidade com uma grande fogueira de pneus, aos gritos de ódio contra os “venecas”.

Os que fugiram deixaram os pertences para trás; o que ficou virou fogueira, a maior delas em frente à rodoviária. Ali foram incineradas malas inteiras, comida, lençóis, barracas, tudo que pudesse ser dos estrangeiros.

Yineth Manzol e as filhas perderam todos os documentos —elas tinham carteiras do SUS e diziam seguir todas as regras. “Ficamos aqui sem nada”, diz. “Agora temos que começar de novo, e não sei para onde vamos.”

Enquanto a fogueira com as coisas da família Manzol e de outros queimava, bandos de brasileiros saíram à caça de “venecas”. Alguns se esconderam numa área militar, mas logo foram descobertos.

Não foram linchados porque os soldados da base de fronteira intervieram —único momento, junto com o cordão de isolamento, em que as forças de segurança locais e as enviadas pelo governo federal deixaram de ser espectadoras.

O grupo de brasileiros então seguiu para a fronteira, onde se travou uma batalha de pedras e garrafas que só apaziguou quando os venezuelanos recuaram e a guarda venezuelana na fronteira impediu os brasileiros de cruzar.

Veio então um momento de trégua que coincidiu com a hora do almoço, até que a Polícia Rodoviária Federal começasse a negociar a liberação da estrada que cruza a divisa.

No fim da tarde, a rodovia abriu, ainda que os brasileiros comemorassem vitória, trocassem análises políticas e considerassem ter passado o recado: “Quem manda no Brasil é os brasileiros”.

A tensão arrefeceu, e o espanhol voltou a ser ouvido nas ruas e lojas de Pacaraima.

Na manhã deste domingo, os brasileiros voltaram à fila da gasolina no lado venezuelano —só existe posto de gasolina no lado venezuelano— e os venezuelanos voltaram para a fila de entrada no Brasil.

Sem dinheiro e só com a roupa do corpo, Yineth Manzol vai esperar para ver se pode voltar a se abrigar na casa onde estava e onde escondeu as filhas na hora da confusão. “Vamos ver se alguém nos ajuda. Eu tenho filhos. Todos aqui têm filhos.”

Colaborou Luciana Coelho, de São Paulo

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