Em discurso, Kazuo Ishiguro ironiza clausura no prêmio Nobel
“Minha Noite no Século Vinte e Outros Pequenos Avanços” é uma edição curta com o discurso de aceitação do Prêmio Nobel feito por Kazuo Ishiguro, em dezembro do ano passado.
Nessa palestra, o autor fala um pouco sobre o início de sua carreira e sobre os momentos de revelação que primeiro fizeram dele um escritor e, posteriormente, ensejaram mudanças em seu trabalho.
O livro funciona como uma pequena autobiografia literária. Nela, vemos um japonês cabeludo de 24 anos, recém frustrado em suas ambições de se tornar estrela do rock, se enclausurar em um porão alugado tentando escrever algo.
O autor trata de sua condição de imigrante na Inglaterra e de ter crescido em um país que parece muito menos cosmopolita do que costumamos imaginar, com poucos não-britânicos, uma imensa ignorância em relação à cultura estrangeira canônica e uma literatura que ainda não havia digerido a Crise de Suez e a perda de sua centralidade imperial.
São especialmente interessantes os momentos em que fala das influências que sofreu. A canção “Ruby’s Arms”, de Tom Waits, sobre um mendigo durão mas que em determinado momento confessa que está com o coração partido, teria feito com que Ishiguro decidisse que em algum momento de “Os Vestígios do Dia” a armadura de seu protagonista precisasse rachar, permitindo que “um desejo vasto e trágico fosse vislumbrado”.
Certa noite em 2001, enquanto assistia a uma comédia de Howard Hawks, outra pequena revelação teria gerado um passo adiante em seu trabalho.
O filme era “Suprema Conquista” (Twentieth Century no original, daí o título do livro), e Ishiguro percebeu que, embora os personagens fossem complexos no sentido de que conseguiam nos surpreender de forma convincente, os relacionamentos nos quais eles estavam inseridos eram planos.
A partir daí, Ishiguro resolveu cuidar dos relacionamentos e deixar que os personagens cuidassem de si. O resultado teria sido o triângulo formado pelos protagonistas de “Não Me Abandone Jamais”.
Uma curiosidade é que o livro, assim como o site oficial do Nobel, cortou a parte inicial do discurso do escritor, na qual ele fala sobre a porta da sala de cerimônia da sede da Academia Sueca.
Ishiguro diz que aquelas portas só são abertas duas vezes ao ano: uma quando o secretário da Academia anuncia o vencedor. Outra, quando o ganhador da vez entra para dar seu discurso.
“Me senti muito honrado em ser uma das únicas duas pessoas que passarão por essa porta neste ano. Mas agora estou pensando que, se eu tentar sair daqui pelo mesmo lugar, encontrarei as portas trancadas. Eu não sei como sair daqui”.
Trata-se de uma parábola e de piada. Alguns viram aí uma ansiedade em relação a como o Nobel enclausura um escritor na reputação com a qual lhe agracia. Outros estabeleceram relação com o conto “Diante da Lei”, de Kafka. Muitos viram no corte da Academia a censura a uma crítica velada.
Agora que estamos sem um laureado de 2018, a parábola de Ishiguro fica como uma predição de seu enclausuramento no posto. No fim, o corte pode ter sido apenas um pedido do autor, mas, seja como for, vale saber que antes do começo havia um outro começo.