Em guerra, República Popular de Donetsk vive saudosismo da União Soviética
O quadro sem molduras de mais de um metro de altura do ex-ditador soviético Josef Stálin oferece as boas vindas àqueles que chegam ao principal ponto de entrada da autoproclamada República Popular de Donetsk.
Acima da pintura do líder comunista em uniforme militar de gala, duas bandeiras da extinta União Soviética. Estão presas ao contêiner utilizado como escritório para expedição de autorizações de entrada no país criado por rebeldes separatistas apoiados pela Rússia no leste da Ucrânia.
No contêiner ao lado, um busto de Lênin repousa sobre o teto, o olhar circunspecto de sempre a observar os campos minados que separam este posto de controle das posições do exército ucraniano.
Em uma guerra em que a narrativa principal se baseia nos traumas mal resolvidos da 2ª Guerra Mundial, Stálin, Lênin e o indefectível símbolo da foice e do martelo estão por todos os lados nesse país que nasceu prometendo defender seus cidadãos do fascismo e do nazismo.
Estão nos bares e nos escritórios dos órgãos públicos. Estão nos carros e nas medalhas que ornam os peitos estufados dos soldados feridos em batalha. Estão nas ruas em cartazes e em incontáveis outdoors que não deixam ninguém se esquecer dos grandes feitos do Exército Vermelho há mais de 70 anos, quando expulsou as forças alemãs comandadas por Hitler aqui dessas vastas e férteis planícies.
A foice e do martelo estão, até mesmo, estampados nas fotos oficiais do primeiro ministro da República Popular de Donetsk, o líder rebelde Alexander Zakharchenko, 42.
“Há claramente um processo de ressovietização em todos os sentidos aqui”, diz um jovem historiador de Donetsk que, por razões de segurança prefere se identificar como Mikhail Grushevski em vez de por seu nome verdadeiro.
“Esta é uma zona que floresceu e viveu seus melhores dias durante os anos áureos do domínio comunista. Há muita nostalgia aqui, principalmente entre os mais velhos”, diz ele, que escolheu como pseudônimo o nome de um historiador e político ucraniano do início do século 20.
Rica em carvão mineral, Donetsk foi fundada em 1870 pelo inglês John Hughes, que instalou as primeiras indústrias metalúrgicas da região, na época sob o domínio do Império Russo.
A partir da década de 20 a União Soviética iniciou um grande processo de expansão da indústria pesada e das minas de carvão, transferindo populações de diversas partes da Rússia para a região. A cidade cresceu e foi rebatizada como Stalino, em homenagem, claro, a Josef Stálin. O nome sobreviveu até a morte do ditador.
Construída sobre um labirinto de túneis, Donetsk se tornou a cidade dos mineiros. Não à toa, o maior clube de futebol da região foi batizado em homenagem aos homens que tiravam as riquezas do subsolo: Shakhtar, em russo, significa mineiro.
“Foi um tempo bom, tínhamos casa, educação, saúde e um bom salário”, conta Alexei Gandzich, 45, filho de um casal de mineiros que viveu os últimos anos de bonança antes da desintegração da União Soviética e das reformas das últimas décadas.
Ele colhia cerejas no quintal da propriedade onde seus pais viveram quase toda a vida, na periferia de Donetsk. Atingida por morteiros, a casa está parcialmente destruída. “Só venho aqui colher as cerejas para vendê-las porque estou desempregado”, diz ele, com medo de que algum novo projétil atinja a casa.
Alexander Zakharchenko assumiu o poder garantindo que os antigos tempos voltariam. Prometeu ampliar as pensões com base em um estado paternal, ao melhor estilo soviético. Estatizou praticamente toda a economia local: das minas de carvão às siderúrgicas, do estádio do Shakhtar Donetsk à Casa de Ópera da cidade. Abandonou a grívnia, a moeda ucraniana, e adotou o rublo russo. Com as sanções impostas pela comunidade internacional, o efeito imediato da nova política econômica de Zakharchenko foi uma debandada da iniciativa privada.
As empresas estrangeiras se foram e os pequenos e médios negócios foram transferidos a aliados do governo. “Há pouco emprego e o governo tem tirado dinheiro não sabemos muito bem de onde, provavelmente da Rússia, para tentar empregar parte da população em serviços básicos”, afirma Grushevski.
A estratégia tem funcionado de forma relativa. As ruas de Donetsk são impecavelmente limpas. Os canteiros estão repletos de flores nesta que é conhecida como a cidade de um milhão de rosas. Os aposentados que não conseguem cruzar para o lado ucraniano para receber suas pensões têm recebido do governo da República Popular de Donetsk.
Por conta de um bloqueio econômico do resto da Ucrânia, o novo país depende integralmente de suas relações comerciais com a Rússia, que, apesar de não reconhecer sua independência, aceita os passaportes emitidos como documentos de viagem válidos.
Acredita-se que a própria Rússia faça uma triangulação com a Ucrânia para que o carvão extraído de Donetsk continue a abastecer as maiores siderúrgicas da região, que ficaram nas cidades controladas pelo poder central de Kiev.
Donetsk à primeira vista se parece com uma típica cidade bem organizada do Leste Europeu. Mas a tranquilidade esconde uma boa dose de medo. Desde que os rebeldes separatistas assumiram o poder, um clima paranoico de caça às bruxas se instalou.
Inspirada pela antiga agência de espionagem soviética, a nova república criou a MGB, um ministério dedicado exclusivamente à espionagem. “Nós sabemos de tudo sobre todos”, avisa, por meio de terceiros, um representante da MGB, em tom claro de ameaça. A Anistia Internacional e outras organizações de defesa dos direitos humanos registram uma série de acusações contra o governo do novo país.
Por aqui, a única operadora de telefonia móvel que funciona efetivamente foi criada recentemente pelo governo. “Todos os telefones são grampeados, não se esqueça disso”, diz Vladimir, jovem de 25 anos que não quer revelar seu sobrenome e que pretende sair de Donetsk em direção à Rússia para estudar.
Estima-se que ao menos um terço da população de Donetsk tenha deixado a cidade após o início da guerra. A maior parte dos que ficaram estão velhos demais para partir ou têm que cuidar de alguém velho.
“Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer e a vida é muito chata por aqui, o melhor mesmo é ir para Moscou” diz Vladimir, enquanto toma apressado a última cerveja em um bar em que bandas de rock se apresentam todas as tardes de sábado. Desde que foi criada, a nova república instituiu um toque de recolher diário entre as 23h e as 6h.
Neste começo de verão no leste da Ucrânia, a Casa de Ópera de Donetsk parece querer fazer chiste com os jovens impedidos de viver suas tão esperadas aventuras noturna e anuncia uma temporada de “La Bohème”. A ópera de Puccini, que tem como pano de fundo a vida boêmia da Paris de 1830, atrai um público bastante diferente de Vladimir: são quase todos idosos ou de meia idade.
“De alguma forma tentamos trazer de volta um sentimento de normalidade a uma cidade que está distante menos de uma dúzia de quilômetros da frente de batalha”, conta Ilona Korzhevich, solista da ópera.
Na plateia, um grupo de cadetes assiste ao espetáculo como parte de sua formação militar. Em poucas semanas seguirão para as trincheiras para defender um país que ainda não conhecem bem.