Equilibrados, livros didáticos falham em ditadura cubana e governo Lula

O ministro da Educação, Ricardo Vélez, fez barulho na semana que passou ao dizer que revisaria os livros didáticos. Defendeu que o março de 1964 não seja tratado como um golpe, e sim como "uma decisão soberana da sociedade brasileira". 

Em entrevista ao jornal Valor, ele afirmou que cabe ao ministério preparar obras que "possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história". 

O presidente Jair Bolsonaro (PSL) e seu terceiro filho, o deputado federal Eduardo (também PSL), já tinham manifestado intenção semelhante. Ou seja, embora Vélez esteja prestes a deixar o governo, a desconfiança em relação a essas obras voltadas para os estudantes tende a permanecer no Palácio do Planalto. 

Os livros didáticos distorcem mesmo a realidade?

A Folha avaliou os cinco títulos de história do ensino médio mais distribuídos em 2018 pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da Educação. 

Em cada um deles, analisou como são descritos oito episódios que costumam provocar divergências entre militantes da esquerda e da direita. Foram considerados trechos dedicados à política internacional, como o colapso do bloco socialista, e à política brasileira, caso do AI-5.

A reportagem considerou negativos aspectos como a omissão de fatos relevantes e a presença do ponto de vista de só um ator da história, sem contemplar interesses de um ou mais antagonistas. 

Dos 40 trechos analisados, 35 demonstram rigor histórico e equilíbrio, contemplando a correlação de forças no episódio em questão. Representam 87,5% do conjunto.

Os problemas surgem em dois temas, a Revolução Cubana e o governo Lula. 

Dois dos cinco livros, "História" (editora Saraiva) e "Contato História" (ed. Quinteto), não tratam o governo de Fidel Castro como um regime autoritário. Em "História, Sociedade & Cidadania" (ed. FTD), existe apenas uma menção secundária à repressão, em um texto de apoio.

A partir de 1959, com a derrubada de Fulgencio Batista, ditador alinhado aos EUA, houve avanços expressivos na ilha caribenha, como a redução do analfabetismo e o fortalecimento do sistema de saúde pública, mas desde então Cuba vive, sim, sob uma ditadura socialista unipartidária. 

No caso do governo Lula, não existem exatamente omissões graves, mas desequilíbrio na leitura histórica. Duas das cinco obras, "História, Sociedade & Cidadania" e "História", se excedem na benevolência, sem o peso necessário aos casos de corrupção. 

Considerando os 40 trechos, 12,5% apresentam omissão de fatos relevantes ou afirmações exageradamente elogiosas. No entanto, mesmo nessas partes enviesadas, é impreciso falar em doutrinação, termo usado com frequência por membros do governo. 

Doutrinar significa incutir em alguém uma opinião sectária. Não foram identificadas passagens com esse intuito nos cinco livros avaliados.

GUERRA DO PARAGUAI (1864-1870)

No final do século 19 e na primeira metade do 20, prevaleceu nas escolas do país a versão de uma luta da civilização, representada pelo heroísmo de Duque de Caxias, contra a barbárie, encarnada pelo ditador paraguaio Solano López.

Nos anos 1960 e 1970, ganhou espaço outra versão sobre a guerra. De acordo com historiadores ligados à esquerda, a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) era tutelada pelo império britânico, disposto a sufocar o Paraguai, um país de economia emergente. Ainda segundo essa corrente revisionista, Caxias agia como um genocida. 

Atualmente, como se constata nos cinco livros analisados, predomina "uma versão menos ideológica, mais coerente e bem apoiada em documentos", nas palavras do historiador Boris Fausto.

Com base nas pesquisas de Ricardo Salles e, principalmente, de Francisco Doratioto, os livros atuais se concentram nas particularidades dos países da América do Sul para explicar o conflito. Tampouco cedem ao modelo simplista de mocinhos contra bandidos.

Os títulos mostram o desfecho da guerra com resultados semelhantes: o Paraguai foi destroçado social e economicamente, e o Brasil teve vitória amarga, com a explosão da dívida com os gastos para custear as frentes de batalha.

Também predomina a visão de que o Exército brasileiro, com Caxias à frente, saiu fortalecido desse episódio. 

INDEPENDÊNCIA DOS PAÍSES AFRICANOS (DOS ANOS 1950 AOS ANOS 1980)

Os livros ressaltam a importância do pan-africanismo, movimento nascido no final do século 19 que defendia a emancipação dos países africanos e a valorização das tradições do continente. 

Não há lacunas graves em nenhum caso, mas "Das Cavernas...", "História" e "Contato História" são mais eficientes ao mostrar o xadrez da independência dos países africano, em que americanos e soviéticos jogaram pesado em meio ao duelo da Guerra Fria. 

REVOLUÇÃO CUBANA (1959)

Entre os oito episódios selecionados pela Folha, esse é o que revela mais omissões.

Os livros "História" e "Contato História" chamam a atenção corretamente para os avanços com a ascensão de Fidel, como o intenso trabalho de alfabetização da população. Também explicam como o embargo econômico imposto pelos EUA prejudicou a ilha do Caribe. 

Mas ambos os títulos se equivocam ao não chamar o regime cubano pelo que ele ainda é, uma ditadura socialista com um partido único.

Em "História, Sociedade & Cidadania", a menção ao aparato repressivo do governo de Fidel aparece em uma posição secundária, como parte de um texto de apoio. 

Os outros dois livros da lista, "História Global" e "Das Cavernas ao Terceiro Milênio", expõem os prós e os contras da ditadura cubana. 

GOLPE DE 1964

O termo "golpe", rejeitado pelo presidente Bolsonaro, é adotado pelos cinco títulos. 

"História, Sociedade & Cidadania" e "Das Cavernas ao Terceiro Milênio" enfatizam a contribuição de partidos políticos e setores da sociedade, como o empresariado, para derrubar o presidente João Goulart, referindo-se ao episódio como "golpe civil-militar". 

"História Global" e "Contato" optam por "golpe militar". "História" usa apenas "golpe". 

Todos apresentam boa contextualização do cenário instalado nas semanas que antecederam o golpe, indicando um movimento de radicalização dos dois lados do espectro político. "A tensa conjuntura internacional da Guerra Fria atuava de maneira negativa na política brasileira, agravando os conflitos entre direitas e esquerdas", escrevem os autores de "História".

Os livros também lembram o Ato Institucional nº 1, assinado pelos militares nove dias depois do golpe, como a consolidação de um movimento francamente autoritário. 

Há lacunas pontuais em parte das obras, mas as verdades históricas, comprovadas por especialistas, prevalecem em todos. Assim, "revisar" os livros em função de 1964 soa como manobra oportunista. 

AI-5 (1968)

Os livros, em uníssono, tratam o regime em vigor naquele momento como "ditadura". Com o Ato Institucional nº 5, o regime amplia cassações, suspende o habeas corpus por crime político e aumenta a repressão por meio de torturas.

Com exceção de "Contato História", os títulos apresentam com clareza o encadeamento dos fatos que influenciaram na decretação do AI-5, como a Passeata dos 100 Mil e o discurso antigoverno do deputado Márcio Moreira Alves. 

COLAPSO DO BLOCO SOCIALISTA (DÉCADAS DE 1980 E 1990)
São unânimes em indicar os graves problemas que provocaram a derrocada do socialismo na antiga União Soviética, como a repressão política, a estagnação da economia e os abusos da burocracia. 

Os livros se saem bem ao mostrar como esses entraves também levaram ao fim do regime socialista em países do Leste Europeu, como Polônia, Romênia e Hungria. 

GOVERNO FHC (1995-2002)

As obras fazem, de modo geral, balanço equilibrado.

Apontam como saldo positivo a inflação sob controle, a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o aumento da taxa de escolarização no ensino fundamental, o programa de combate à Aids, entre outras medidas. 

Por outro lado, indicam a alta do desemprego, a sobrevalorização do dólar e o crescimento da dívida interna. 

Os livros "História, Sociedade e Cidadania", "História Global" e "Das Cavernas..." lembram ainda a denúncia de compra de votos de deputados federais para que o governo conseguisse aprovar a emenda que permitiu a reeleição para o Poder Executivo. O caso foi revelado pela Folha. 

Com exceção de "Das Cavernas...", as obras publicam listas com argumentos favoráveis e contrários às privatizações do governo FHC, informações que ajudam o leitor a formar a sua própria opinião. 

​GOVERNO LULA (2003 A 2010)

"História, Sociedade & Cidadania" dedica sete páginas aos dois mandatos do petista e quatro para FHC, que também governou por oito anos. 

Essa diferença de espaço seria uma questão secundária se o trecho do livro reservado a Lula fosse mais equilibrado. Ao longo dessas sete páginas, aparecem como contraponto negativo apenas dois parágrafos sobre o escândalo do mensalão e uma lista com argumentos favoráveis e contrários ao Bolsa Família. 

É justo, como faz o livro, ressaltar o maior êxito do governo Lula, a relevante melhora nas condições de vida dos mais pobres, assim como a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), entre outros avanços. 

Mas é ruim aclamar o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) sem mencionar que muitas obras não saíram do papel. Ou elogiar a política internacional sem lembrar da desnecessária proximidade com autocracias, como o Irã.

Em "História", o trecho sobre o governo Lula se estende por 16 parágrafos, com apenas dois de tom negativo. Além disso, o livro recomenda o açucarado "Lula, o Filho do Brasil", filme que edulcora a trajetória do petista.

Nos outros três títulos, o balanço é mais equilibrado. "Das Cavernas..." enfatiza a importância do aumento do poder de negociação do Brasil nos organismos internacionais e da missão de paz no Haiti, mas lembra as denúncias de corrupção no primeiro e no segundo mandatos de Lula. 

A reportagem entrou em contato com as editoras dos livros "História, Sociedade & Cidadania", "História" e

"Contato" para ouvir os autores a respeito das falhas apontadas, mas não obteve resposta até a conclusão desta edição.

Colaboraram Luciana Coelho e Fábio Zanini

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