Esquerda no Brasil falhou em apontar futuro, diz vice de Evo Morales
A esquerda precisa fazer autocrítica não por estar perdendo espaço, mas porque a autocrítica é inerente a movimentos progressistas, disse à Folha o vice-presidente da Bolívia, Álvaro García Linera, em Buenos Aires para o primeiro Fórum do Pensamento Crítico, organizado pelo Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais.
Vice de Evo Morales desde que este chegou ao poder, em 2006, García Linera, 56, é tido como estrategista do governo. Sociólogo e matemático, participou da guerrilha nos anos 80 e foi preso por cinco anos. Escreveu "A Potência Plebeia" (Boitempo, 2010) e "Marxismo e Indigenismo na Bolívia" (inédito no Brasil), entre outros livros.
A esquerda vem perdendo espaço na região. No Brasil, diz-se que um dos motivos da derrota do PT na última eleição foi a falta de autocrítica. Qual a sua opinião?
Este é um bom momento para que a esquerda faça um balanço do que se avançou quando esteve no poder e também das dificuldades e dos erros. A perspectiva tem de ser tirar lições para uma nova onda progressista.
Como isso ocorreria, quando vários países se voltam para a direita?
Temos de nos preparar, pois virá uma nova leva de manifestações populares em resposta às políticas desses governos de direita. Então se abrirá espaço para a expansão de pensamento progressista. Os tempos estão se comprimindo, logo será novamente um momento de lutas, na região e no mundo.
A autocrítica é obrigatória em qualquer movimento progressista. Se, no caso da esquerda brasileira, não se fez, foi um equívoco. Não defendo uma autocrítica de bater com uma pedra no peito, mas uma autocrítica positiva, para entender por que tropeçou e não tropeçar de novo.
Por que a direita ganha espaço?
Todo processo de transformação gera uma reação, é uma lei sociológica. Um estrategista político tem de pensar em como impedir que essa reação de rejeição de um setor chegue a extremos, e que se expresse de modo racista e desagregador. É preciso impedir que isso se apodere do senso comum da sociedade.
Como?
Há duas chaves para evitar que setores reacionários, que se viram invadidos pela plebe, não irradiem uma reação conservadora que atinja um caráter popular, como acaba de acontecer no Brasil.
A primeira é a estabilidade econômica. Quando setores populares sobem, precisam ter garantia de que há estabilidade e continuidade na ascensão. Se isso não ocorre, esses setores podem se acoplar ideologicamente ao sentimento conservador que predomina na classe média.
Isso só se alcança se as pessoas que saíram da pobreza têm certeza de que não haverá retrocesso. Um governo progressista que logra avanços não pode seguir falando com esse setor na linguagem reivindicativa de antes. O discurso e as decisões políticas têm de apontar um futuro. Só assim essas pessoas continuarão apoiando o governo.
Isso não parece ter ocorrido no Brasil. Além disso, a economia estancou, truncando a mobilidade social. Nesse ambiente, é natural que as novas classes médias, que se beneficiaram do processo progressista, se voltem contra suas próprias decisões.
E qual é a segunda chave?
O sentido comum. Ondas progressistas chegam com uma narrativa, um conjunto de preceitos morais que removem uma parte do sentido comum acumulado por décadas.
Se há uma grave crise econômica ou uma frustração coletiva, o sentido comum transformado volta a ser engolido pelo sentido comum de antes.
Se um movimento progressista não tem capacidade de seguir irradiando um novo sentido comum —isso se faz criando uma nova cultura, mais solidária e afincada na auto-organização coletiva—, passará a ser ameaçado pelo velho sentido, reacionário.
Quando os sociólogos se perguntam por que as classes médias fruto dos processos progressistas agora se voltam contra eles, é por isso.
A economia boliviana tem tido bom desempenho. Isso é parte do plano revolucionário?
Sim, é uma obsessão. Garantir que a economia cresça e que nunca seja interrompida a possibilidade de ascensão social. Isso é o que mantém a esperança nas transformações culturais que por fim podem mudar a sociedade.
Tratamos a economia com pragmatismo. Quando chegamos ao poder vivíamos do gás e em parte da mineração. Montamos um sistema em que, se houvesse uma queda no preço das coisas que exportamos, nosso mercado interno nos garantiria. Somos globalistas por conveniência e protecionistas por convicção.
Nacionalizamos o gás, a eletricidade, as comunicações. Mas com os bancos, fizemos acordo e os obrigamos a dar-nos parte de seus lucros. Esse dinheiro, que antes saía da Bolívia, vai para a agricultura, para a construção de infraestrutura e moradia, para a criação de empregos. E o resultado é que, em 2005, éramos uma economia de US$ 9 bilhões e hoje somos uma economia de US$ 38 bilhões.
Quando entrevistei o presidente Evo Morales em 2014, ele disse que o aborto não era prioridade na Bolívia e que as políticas para a mulher estavam voltadas ao plano familiar. O sr. não acha que o feminismo virou uma bandeira da esquerda e essa visão é ultrapassada?
Sim, e esse mesmo presidente que te disse isso em 2014 hoje pensa diferente e esteve ativo para convencer nossa bancada a alterar a lei atual, que permite o aborto apenas em duas circunstâncias [risco de morte da mãe e estupro], para oito.
Não conseguimos porque os médicos, ou seja, a classe média, ameaçaram fazer colapsar o sistema de saúde. Quem queria aprovar era a nossa bancada, camponesa, a que estaria vinculada a valores tradicionais, mas quem barrou foi a classe média.
Essa não era uma bandeira de nossa revolução. Mas, quando se dá espaço para que entrem na política indígenas, pobres, minorias e mulheres, eles vêm com suas pautas. Portanto é nossa obrigação acompanhar as mulheres. Nosso movimento absorveu a agenda despatriarcalizadora.
Evo Morales perdeu um referendo em 2016, em que pretendia mudar um artigo da Constituição para poder tentar um quarto mandato. Mas vai se candidatar às eleições de 2019. Qual é a estratégia?
Há um artigo da Convenção Internacional de Direitos Humanos que diz que postular-se à Presidência é um direito humano, e a Constituição reconhece que os convênios internacionais estão acima dela. Negar que o presidente se candidatasse era atentar contra seu direito humano.
O artigo visa garantir que presos políticos possam se candidatar, não que um presidente no cargo há três mandatos o faça.
É questão de interpretação, nós levamos ao Tribunal Constitucional, que decidiu que se aplica ao presidente.
A Bolívia tem dado respaldo ao regime venezuelano. Como resolver, então, a crise humanitária que vive o país?
Há um princípio inegociável: ninguém no mundo pode se meter nos problemas de outro país. A Venezuela tem de resolver essa crise sozinha.