Expoentes do Partido Democrata reveem apoio a pena de morte nos Estados Unidos
O governador da Califórnia, Gavin Newsom, assinou recentemente uma ordem executiva que elimina a ameaça de execução para os 737 presos no corredor da morte em seu estado —o maior corredor da morte no hemisfério ocidental— enquanto ele estiver à frente do governo.
Quase imediatamente, presidenciáveis democratas manifestaram apoio à iniciativa, descrevendo a pena de morte como uma barbaridade moral carregada de viés racista. A senadora da Califórna Kamala Harris, ex-promotora pública, pediu uma moratória federal das execuções. O ex-deputado Beto O’Rourke, do Texas, fez o mesmo.
O momento assinalou uma mudança de postura generacional em um partido do qual alguns candidatos sempre defenderam a pena de morte para evitar ser acusados de leniência com o crime.
Mas os democratas não estão liderando um debate nacional —estão seguindo uma tendência que vem de décadas e que viu o apoio popular à pena de morte cair de quase 80% na década de 1990 para pouco mais de 50% hoje.
Mesmo assim, muitos pensam que Newsom não fez nenhum favor político a seu partido quando forçou democratas a falarem sobre uma questão que ainda pode ser altamente divisiva numa eleição geral. Mesmo na Califórnia, estado de maioria solidamente democrata, os eleitores rejeitaram em 2016 uma iniciativa posta à votação que previa o fim da pena de morte, em vez disso aprovando uma medida que acelerava as execuções.
Resumindo, a moratória anunciada pelo governador da Califórnia capturou tanto o que mudou significativamente quanto o que não mudou em um problema profundamente entranhado na psique nacional. Como a proliferação das armas de fogo, a pena de morte distingue os Estados Unidos de outras democracias ocidentais, quase todas as quais a rejeitam.
O pesquisador Bill Whalen, do Hoover Institution e no passado assessor do ex-governador republicano da Califórnia Bill Whaley, escreveu em uma coluna: “Todo democrata que queira tirar o presidente Trump de seu cargo precisa decidir agora como se posiciona em relação à pena de morte.
“Será uma proeza de equilibrismo delicado para alguns democratas, dado que a pena de morte é rejeitada terminantemente pela base progressista do partido mas é muito mais popular no interior linha-dura do país."
A despeito da nova atenção voltada ao tema, os presidentes possuem poder limitado de influir sobre a pena de morte, apontaram vários especialistas em entrevistas. Um presidente teria o poder de esvaziar o corredor da morte federal, mas este inclui apenas 62 presos, contra os mais de 2.500 detentos em penitenciárias estaduais que estão condenados à morte.
O governo federal executou apenas três pessoas desde que restaurou a pena capital, em 1988. Uma delas foi Timothy McVeigh, e a última execução ocorreu em 2003.
O presidente tem poder muito maior de determinar o futuro da pena de morte no país por meio da nomeação de juízes para a Suprema Corte. Especialistas preveem que em última análise será ela quem vai decidir se a Constituição permite execuções ou não em um momento de reconhecimento crescente dos custos financeiros altíssimos da pena de morte, das absolvições de alto perfil e das pesquisas que revelam viés racista persistente nos processos criminais capitais.
“O presidente e o que o presidente faz vão influir fortemente no pensamento da Suprema Corte sobre esse tema, porque o presidente reflete o eleitorado nacional”, disse James S. Liebman, professor da Universidade Columbia especializado em pena de morte.
Novas posições e riscos diferentes
Não é preciso voltar muito tempo atrás para observar a mudança ocorrida nas posições assumidas por candidatos democratas.
Em 2016, pela primeira vez, a plataforma do Partido Democrata pediu a abolição da pena de morte. Mas a pré-candidata presidencial Hillary Clinton era a favor da pena de morte. O presidente Barack Obama tampouco defendeu o fim dela. Al Gore foi a favor da pena de morte e Bill Clinton, também.
Algumas pessoas receiam que a pena de morte possa ser uma questão na qual os democratas percam do presidente Donald Trump, que anda falando em ampliar a base de criminosos passíveis de ser sentenciados à morte de modo a incluir narcotraficantes condenados e que pode usar a questão para mobilizar sua base e retratar os democratas como fracos no combate ao crime.
Em um post no Twitter sobre a moratória de execuções decretada por Newsom, Trump escreveu: “Amigos e familiares das sempre esquecidas VÍTIMAS não estão contentes, e eu tampouo!”
A questão lança luz sobre divisões ideológicas e generacionais entre muitos eleitores democratas. Muitos dos candidatos presidenciais já expressaram publicamente sua oposição à pena de morte, mas o ex-vice-presidente Joe Biden, previsto para anunciar sua candidatura à Presidência nas próximas semanas, já declarou seu apoio a ele.
Quando era senador, nos anos 1990, Biden defendeu muitas políticas intransigentes contra o crime que são rejeitadas por liberais hoje, entre elas a imposição de limites aos recursos apresentados em favor de presos no corredor da morte.
“Biden foi um dos maiores proponentes das emendas de 1994 que limitaram fortemente a capacidade de detentos no corredor da morte obterem uma revisão judicial real de seus casos”, disse Robert Dunham, diretor executivo do Death Penalty Information Center, organização sem fins lucrativos que publica análises e informações sobre a pena de morte. “Outras pessoas que apresentaram esse projeto de lei disseram desde então que creem que foi um erro. Acho que os eleitores vão ter que decidir se os candidatos à Presidência cometeram erros e aprenderam com eles ou se estão declarando posições novas porque o ponto de vista do público mudou.”
Kamala Harris se opõe à pena de morte há anos, mas tem um histórico complicado em relação ao problema. Quando foi procuradora em San Francisco, ela se negou a pedir a pena de morte para um réu acusado de assassinar um policial, provocando reações de fúria da direita. Mas defendeu a pena de morte no estado quando foi procuradora geral do estado, e duas vezes, em 2012 e 2016, negou-se a tomar posição sobre iniciativas legais postas à voto que propunham a abolição da pena capital.
Tirando Joe Biden, a maioria dos outros presidenciáveis democratas já se opôs à pena de morte. Além de Harris e O’Rourke, que disseram que apoiariam uma moratória federal, os senadores Bernie Sanders, Cory Booker, Elizabeth Warren e Kirsten Gillibrand todos disseram que apoiam a moratória de Newsom. Dois outros pré-candidatos —John Hickenlooper, ex-governador do Colorado, e Jay Inslee, governador de Washington— adotaram moratórias em seus próprios estados.
Limitar as execuções, mas não acabar com elas
Apesar de todas as mudanças de postura, o status da pena de morte hoje é definido por dois fatores. A Suprema Corte, que determina sua legalidade, parece estar firmemente a seu favor. Ao nível estadual, onde o sistema de justiça é administrado por promotores, jurados e tribunais locais, o número de sentenças de morte e de execuções está caindo drasticamente.
Em 1972 uma Suprema Corte de composição muito diferente da atual declarou as execuções anticonstitucionais, dizendo que o uso arbitrário da pena capital constitui “castigo cruel e inabitual”, conforme definido na Oitava Emenda constitucional. Quatro anos mais tarde, depois de os estados terem começado a reformar seus sistemas de pena de morte, a Suprema Corte decretou que as execuções podiam ser retomadas. Os primeiros novos estatutos federais sobre a pena de morte foram aprovados em 1988.
As execuções subiram muito durante um período de alto índice de criminalidade, nas décadas de 1980 e 1990. O pico das sentenças de morte ocorreu em 1996, quando 315 pessoas foram condenadas à morte. Em 1999, 98 pessoas foram executadas, o maior número em qualquer ano desde 1976.
Desde então a criminalidade diminuiu, o número de novas sentenças de morte caiu para 31 em 2016, o mais baixo da era moderna, e 20 estados aboliram a prática.
Em três processos importantes nos últimos anos –em 2002, 2005 e 2008--, a Suprema Corte estreitou o âmbito da pena de morte, decidindo que menores de idade e pessoas com deficiências intelectuais não podem ser executados e limitando o tipo de crimes passíveis de ser punidos com a pena capital, que agora praticamente se resumem a homicídio.
Mas a corte –que inclui dois novos juízes conservadores nomeados por Trump, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, e tem uma maioria conservadora de 5 a 4— é vista como estando solidamente a favor da pena de morte
“O problema mais tóxico”
Não é de hoje que a pena de morte exerce papel poderoso na política presidencial, especialmente nas décadas de 1980 e 1990.
Ela ajudou a afundar a candidatura do democrata Michael Dukakis em 1988, quando ele disse em debate que seria contra uma execução mesmo que sua esposa, Kitty, fosse violentada e assassinada.
Quatro anos mais tarde, Bill Clinton se afastou momentamente da campanha para voltar correndo ao Arkansas para supervisionar a execução de um deficiente mental condenado pela morte de um policial. Com isso, Clinton fortaleceu sua imagem de político intransigente na luta contra o crime.
“A pena de morte era a questão mais tóxica”, disse o professor da Escola de Direito de Yale Stephen B. Bright, notando que muitos juízes estaduais foram afastados de seus cargos naquele período por serem contra a pena de morte. O governador Mario Cuomo, de Nova York, não conseguiu se reeleger em 1994 em parte por se opor a ela.
A opinião política agora é outra. Não apenas democratas se mostram mais dispostos a expressar oposição à pena de morte como também muitos republicanos –mas não Trump— estão se voltando contra a pena capital, por quererem limitar o âmbito de ação do governo e, especialmente, devido aos custos altos.
Um estudo mostrou que a pena de morte já custou US $5 bilhões à Califórnia desde os anos 1970. Outro estudo, este de Ernest Goss, professor de economia na Universidade Creighton, concluiu que cada processo no Nebraska envolvendo a pena de morte custou US $1,5 milhão mais do que aqueles em que os promotores pediram pena de prisão vitalícia sem possibilidade de liberdade condicional.
Essas realidades mais complexas não reduzem o potencial de divergências políticas acrimoniosas em 2020.
“Acho que as primárias democratas talvez sejam as primeiras em que os candidatos superam uns aos outros em seus posicionamentos de esquerda sobre questões de justiça criminal”, disse Carol S. Steiker, especialista em pena de morte na Escola de Direito de Harvard.