Fantasia e solidão se misturam em 'Minha Querida Sputnik', de Murakami
O livro "Minha Querida Sputnik", de Haruki Murakami, será o tema da discussão do próximo encontro do Clube de Leitura Folha. A conversa acontecerá na terça-feira (30), às 19h, na Livraria Martins Fontes Paulista (av. Paulista, 509, tel. 11 2167-9900), com entrada grátis. Leia abaixo texto de Márcia Namekata, doutora em letras e professora da UFPR, a respeito da obra.
Em "Minha Querida Sputnik" (1999), um dos vários romances de autoria de Haruki Murakami, 69, Sumire é uma aspirante a escritora, jovem de 22 anos por quem o narrador da obra, K., nutre um amor não correspondido.
Sumire e K. são amigos muito próximos, e K. inicia a obra falando sobre a paixão repentina que se apossara da amiga: “A pessoa por quem Sumire se apaixonou era, por acaso, dezessete anos mais velha do que ela. E casada. E, devo acrescentar, era uma mulher. Foi aí que tudo começou, e onde tudo acabou. Quase.”
Essa mulher casada por quem a jovem se apaixona é Miu, uma empresária de ascendência coreana nascida no Japão. As duas se conhecem em uma festa de casamento, e Miu resolve empregar Sumire como sua secretária.
O nó da história se dá quando ambas fazem uma viagem de turismo e negócios à Grécia, e Sumire se declara a Miu, que não corresponde aos seus sentimentos. Sumire então desaparece, e a empresária pede ajuda a K. para descobrir o seu paradeiro.
"Minha Querida Sputnik", como muitas das obras de Murakami —que se dividem entre romances, ensaios e traduções— já foi publicada em mais de 50 idiomas. Apresenta em seu conteúdo ingredientes que consagraram sua escrita ao redor do mundo: a solidão do japonês moderno, a busca pela essência do eu, o fantástico e os mundos paralelos.
Certa ocasião, em uma entrevista, Murakami proferiu uma frase que em muito resume seu universo: "Quando escrevo, eu não faço distinção entre o natural e o sobrenatural. Tudo parece real. Esse é o meu mundo". O mecanismo pelo qual o mágico normalmente é apresentado na sua ficção é chamado de "outro mundo" ou, às vezes, "o lado de lá".
De uma perspectiva psicológica, trata-se de uma representação do inconsciente: percebemos que são recorrentes nas obras do autor elementos como túneis, bibliotecas, labirintos, corredores escuros e poços profundos, através dos quais seus narradores passam dos males urbanos do mundo a um imensurável abismo cósmico.
Suas histórias (re)traçam uma trilha de volta ao local onde Murakami as encontrou: os psiquiatras o chamariam de "inconsciente", ele o chama de "basement" —um local escuro, frio e quieto, um "porão da alma". Ele diz que tal local pode ser perigoso para a mente humana, e é de lá que tira suas histórias e as leva para a superfície, para o mundo real.
Em muitos dos enredos do autor, seus protagonistas —normalmente pessoas comuns que vivem nas grandes cidades do Japão— defrontam-se com esse outro mundo como forma de buscar o seu verdadeiro "eu", em muitos aspectos remetendo à ideia da jornada do herói, tão discutida pelo escritor americano Joseph Campbell.
Essa característica é perceptível em outros romances de Murakami, como "Kafka à Beira-Mar" (2002), "1Q84" (2009-2010) e "Caçando Carneiros" (1982), em que os heróis vivem uma trajetória muito semelhante à das personagens das narrativas maravilhosas, passando de uma situação de carência à supressão da carência inicial.
"Minha Querida Sputnik", no entanto, é uma história de desencontros amorosos e, sobretudo, de solidão. Embora grande parte das personagens de Murakami seja solitária e introspectiva, como um retrato do Japão contemporâneo, essa característica é levada ao extremo, chegando ao ponto de cada um dos personagens centrais —Sumire, Miu e K.— ter acesso ao "outro mundo" em sua própria dimensão, enfrentando seus conflitos pessoais.
O caso mais intrigante é o de Miu, que, no momento em que vive o confronto entre o mundo real e o imaginário, tem sua imagem fundida em duas, e seu outro "eu" fica preso a esse mundo paralelo.
Assim, ao adentrarmos o universo de "Minha Querida Sputnik", percebemos uma mescla entre o real e o onírico: a própria Grécia, que é o espaço onde vai se desenrolar a busca por Sumire, já seria a representação do "outro lado", quando sonhos e segredos das personagens em jogo virão à tona.
Apesar de uma temática aparentemente complexa, a obra apresenta elementos que têm conferido a Haruki Murakami uma legião de fãs, do Oriente ao Ocidente: uma linguagem direta e acessível, que facilita a compreensão de suas ideias por leitores do mundo todo; referências à cultura pop e também à música (que vão desde peças clássicas até o rock dos anos 1980) e literárias.
Diante do sentimento de dúvida e de estranhamento que muitas vezes manifestam seus leitores, diz o autor que em seu mundo ficcional não há respostas, apenas sonhos.
"Muitas pessoas me dizem que elas não sabem o que sentir quando terminam algum de meus livros, porque a história é sombria, ou complicada, ou estranha", diz Murakami. "Mas, enquanto elas leem, estão dentro do meu mundo e estão felizes. Isso é bom."
Márcia Namekata, doutora em letras, é professora da Universidade Federal do Paraná.