Fato e especulação se entrelaçam em livro sobre o último tsar russo
Se você costuma comprar livro apenas pelo título, um alerta: “O Último Tsar”, de Robert Service, não é uma biografia de Nicolau 2º (1868-1918), da Rússia, no estilo dos escritos publicados no Brasil sobre Catarina, a Grande, e Pedro, o Grande, de Robert K. Massie —ou mesmo do antigo e sentimental “Nicolau e Alexandra”, do mesmo autor, abordando o derradeiro casal real da Rússia, e adaptado para as telas em 1971.
Se a obra de Massie foi redigida há meio século, em plena Guerra Fria, quando Nicolau 2º era um dos grandes vilões da história oficial soviética, a de Service chega após o fim da URSS, com o monarca literalmente canonizado —transformado em mártir pela Igreja Ortodoxa Russa no Exterior em 1981, recebeu do Patriarcado de Moscou, em 2000, com mulher e filhos, o título de “Portador da Paixão”, atribuído a santos que padeceram por sua fé, devido a sua execução pelos bolcheviques, em 1918.
Como bem sabe quem assistiu ao longa “Leviatã” (2014), de Andrei Zviánguintsev, na Rússia de hoje, com a Igreja Ortodoxa não se brinca. No ano passado, a deputada Natália Poklónskaia, do partido Rússia Unida (o mesmo de Putin), liderou uma campanha (malsucedida, porém muito barulhenta) pela proibição do filme “Matilda”, do diretor Aleksêi Utchítel, que retratava o caso amoroso de Nicolau 2º com a bailarina Matilda Ksechínskaia.
Para o bem ou para o mal, o nome de Ksechínskaia sequer aparece no livro de Service. Tampouco devem ser esperados grandes detalhes sobre momentos cruciais do reinado de Nicolau 2º, como a derrota na guerra contra o Japão (1904-1905), a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ou a controversa figura do místico Grigóri Rasputin (1869-1916) —que aparece na obra, mas tangencialmente.
O historiador britânico de 70 anos limita judiciosamente seu objeto à investigação dos 16 últimos meses da família real russa, da deposição do trono pela Revolução de Fevereiro de 1917 até seu fuzilamento.
Ao longo de 49 capítulos breves, entremeados por um belo anexo de imagens, o leitor acompanha praticamente cada passo dos Románov rumo a seu fim, obtendo descrições pormenorizadas de seus trajes, cardápios e atividades de lazer.
Service procura caracterizar cada membro do séquito do monarca, detalhando seu vaivém pelo país e as complexas disputas entre os bolcheviques a respeito do que fazer com a família real. Tudo isso é feito recorrendo a fontes como depoimentos de testemunhas em inquéritos e os diários do monarca, que talvez constituam o principal mérito do livro.
O evidente anticomunismo de Service não se traduz em canonização imediata do retratado. Muito pelo contrário: o historiador não esconde o antissemitismo de Nicolau, nem a reprovação por algumas de suas políticas. Na verdade, por vezes o historiador se arrisca a cometer o pecado contrário: o de parecer competir com Nicolau e querer ensinar a ele como deveria ter governado a Rússia em seu fatídico reinado.
Service tampouco carrega nas tintas ao descrever o trágico fim dos Románov —o relato objetivo do fuzilamento da família real e de seu séquito em Iekaterinburgo já é por si só horripilante—, nem dá crédito às hipóteses de fuga e sobrevivência de membros da família.
Contudo, em algumas questões, como a análise dos livros que Nicolau 2º leu em seu cativeiro, Service faz a objetividade ceder à especulação. Deste ponto de vista, a parte do livro em que o autor não resiste a sobrepor convicções a provas é a questão da responsabilidade de Lênin no assassinato da família real.
Embora afirme taxativamente que “não existe, portanto, nenhuma confirmação de que Lênin e Sverdlov tenham ordenado a execução de Nicolau e de sua família”, Service desenvolve uma argumentação longa e imaginativa para sustentar o contrário.
Para o historiador britânico, os líderes bolcheviques “foram hábeis em apagar seus traços de responsabilidade pela ordem da execução”.
O argumento faz sentido. Porém, enquanto não surgir documentação comprovando ou a responsabilidade, ou seu apagamento, sua arenga continua sendo mera especulação, pertencente antes ao domínio da ficção que ao da História.