'Flip pirata' critica programação 'leite com pera' da oficial
Tem a Flip e a Flipei. A primeira, o Festival Literário Internacional de Paraty, não é bem-vista pelo público da segunda, a Festa Literária Pirata das Editoras Independentes.
“Eles são leite com pera, a gente é catuaba com dogão”, diz Camila Manso, 23, que vive de poesia (“mas nada rimado, fru-fru”) e bicos em cabeleireiro. Para a professora de inglês Rose Gimenes, 53, “aqui estão as questões que realmente precisam ser discutidas”.
Do lado de lá do rio Perequê-Açu, onde fica a tenda principal da Flip, só viu “mesas fraquinhas”. Não conhece “muito bem” a obra da homenageada desta edição, Hilda Hilst, mas uma coisa é certa: “Ela deve estar se revirando no túmulo, não está bem representada”.
A Flipei não tem tenda, tem barco, um com caveira de pirata, estêncil do Lula e camisas da Marielle Franco por R$ 40 (a renda prometida à família da vereadora carioca do PSOL assassinada).
O público senta em bancos de papelão ou no gramado em frente à nau, muitos com cerveja artesanal de R$ 10 na mão, para acompanhar uma programação com coqueluches da esquerda (Guilherme Boulos, Marcelo Freixo, Gregorio Duvivier) e mesas como O Controle dos Corpos no Neoliberalismo e A Economia do Golpe. No domingo (29), último dia, um Ritual Antropofágico de Despedida do Temer Deste Planeta.
O blogueiro Felipe Moura Brasil, um dos prediletos da direita, já apelidou a Flip “de Flep, Festa Literária da Esquerda em Paraty”. De esquerda? Piada, dizem os frequentadores da Flipei.
A começar pelos palestrantes. “A direita está representada do outro lado do rio, que se crê um pensamento único. Aqui posso falar cu, posso falar golpe. A gente aqui é o rabicho do negócio”, diz o jornalista Pedro Alexandre Sanches. A audiência vibra.
Cauê Amani, 30, é o curador da Flipei, que reúne sua Autonomia Literária, de títulos como “MTST: 20 Anos de História”, e outras 12 editoras independentes. Compartilha com a plateia uma pulga atrás da orelha sobre o acidente que matou Teori Zavascki, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, no mar de Paraty. “O avião do Teori, foi muito louco. Se você concatena tudo, tem uma normalização bizarra das coisas.”
Mais louco ainda, diz, é o ministro morrer “num lugar que tá cheio de jatinho toda hora. A gente aqui vai no bar tomar uma breja, eles [os ricos] vão para essas ilhas ali”.
Rose, a professora, crê que as grandes editoras pautam a Flip: “A impressão que me causa quando penso em alguns dos homenageados é que tem que tirar leite de pedra para tentar explicar por que são consistentes, mas não quero dar nomes”.
Pois Cauê tem suspeita gêmea. Só que a Flip não pode mais ignorar os piratas, não quando seu orçamento encolhe a cada ano, não em meio a uma crise no mercado editorial, diz.
“Entenderam que, para se reinventar, tem que deixar outras casas participarem”, afirma à Folha este curador que vai trabalhar de Havaianas. A Flipei, na verdade, não é tão pirata assim. Eles desembolsaram R$ 2.500 para serem incluídos na programação oficial da Flip.
A escolha da sede foi proposital. “Uma casa [no centro histórico de Paraty] é 30 paus [R$ 30 mil]. O barco, R$ 10 mil. E pra alugar a casa você está pagando o herdeiro da Globo ou da Coroa. Aqui pago para um caiçara”.
Isso de perguntar se o festival das independentes tem inclinação ideológica de um Fórum Social Mundial, versão literária, é cisma da imprensa, diz Cauê. “Separar ‘ah, você é de esquerda, beleza, você é de direita, não... Não é assim. Organicamente, somos todos progressistas, pois tentamos transformar o mercado editorial.”
Diz ele que, mesmo se a Flip não embarcasse na nau pirata este ano, eles fariam sua festa de qualquer jeito, “na raça, contrariando tudo”. Mas tudo bem se aliar às grandes. É uma filosofia “paulofreiriana”, segundo Cauê. “Se dá pra integrar, beleza, a gente faz parceria onde tem cooperação.”
Deste lado do Perequê-Açú está Gnomo Brasil, apelido do mineiro Heitor, 33, um vendedor de bijuterias como um “anel de fada”.
A alcunha ele ganhou graças aos chapéus verdes que confecciona. Um deles, mostra uma foto no Instagram (@fugicomhippie), foi parar na cabeça de Lula. “Foi na reeleição da Dilma. Fui até o Instituto Lula porque achei que ia ter gente para eu vender minhas coisas.”
Chegou pertinho do ex-presidente: “Falei ‘oi, Lula, sou o Che Guevara brasileiro’. Na época eu só sabia que o Che viajava, não sabia que era guerrilheiro”. Diz ele que Lula, intrigado, perguntou: “Ei, Gnomo, que porra é essa na sua cabeça?”.