Fora do padrão, toscano Sarri tenta vingar no instável Chelsea
A estrada sobe de Faella, no vale do rio Arno, na Itália, para o alto das colinas, passando pelas vinhas alinhadas com precisão militar e pelos pomares de oliveiras, até que chega aos bosques, densos, escuros, selvagens. Em Consuma, o ponto mais elevado do passo, a vista se abre e permite ver Chianti, a oeste; Arezzo, ao sul; Florença, ao norte.
Consuma não é o ponto final da jornada. Depois de mais uma hora, e de incontáveis curvas sinuosas na estrada ladeada por ciprestes esguios, a rota desce para a aldeia de Stia, com seus telhados de terracota aninhados em um oceano de verde —um pequeno idílio toscano aconchegado no vale. O campo de futebol, à margem do rio e protegido por uma cerca de arame, é a primeira coisa que o visitante vê ao chegar.
Por mais de um ano, Maurizio Sarri fez esse percurso, e o percurso de volta. quase todos os dias. Ele costumava fazê-lo depois de trabalhar o dia inteiro, saindo de Faella às 17h e chegando bem tarde em casa no retorno. Era comum que desse carona a outras pessoas que viviam nas cidadezinhas modorrentas que se espalham pelo vale do Arno, para dividir o custo da gasolina. A cada duas semanas, ele fazia a viagem no sábado, para um breve treino, e depois voltava para casa e a repetia no dia seguinte para o jogo do domingo. Stia era o ponto final de sua trajetória, nesses dias. Mas, em retrospecto, foi lá que tudo começou.
No sábado, Sarri, 59, dirigiu o Chelsea pela primeira vez no Campeonato Inglês, na vitória por 3 a 0 sobre o Huddersfield. O italiano é o 13º treinador a comandar o clube desde que o impaciente Roman Abramovich assumiu o controle em Stamford Bridge, e está longe de ser o único a não ter feito sucesso como jogador. De seus predecessores, mais ou menos o mesmo pode ser dito sobre José Mourinho, André Villas-Boas e Rafael Benítez.
É verdade que Sarri é um pouco mais velho que a maioria de seus pares: ainda que não possa defini-lo como um ancião, entre os treinadores do Inglês, ele teve de esperar bastante por sua chance na elite do futebol. Tinha 55 anos quando comandou seu primeiro time na Série A italiana, o Empoli, e 56 quando conseguiu sua chance em um grande time, o Napoli, para o qual ele torcia, de longe, quando criança.
Mas não é tanto a duração de sua espera que o diferencia, e sim os locais nos quais ela transcorreu.
Pode-se dizer que existem três caminhos para se tornar treinador na elite do futebol: como ex-jogador (Pep Guardiola); começando por uma escola e subindo aos poucos (Benítez); ou trabalhando como auxiliar de um treinador estabelecido e respeitado (Mourinho).
Sarri não percorreu nenhum deles. Não se enquadra aos padrões de seus colegas de profissão. Passou a maior parte de sua carreira não só trabalhando fora do futebol estritamente profissional, nas ligas regionais toscanas, como o fazendo em tempo parcial, enquanto mantinha seu emprego em período integral como administrador de patrimônio para o Banca Toscana e mais tarde para o Monte dei Paschi di Siena, dois bancos italianos. Essa formação foi usada ocasionalmente como motivo de crítica; Sarri conta que alguns de seus críticos costumavam chamá-lo de “o funcionário”, simplesmente porque teve outro tipo de emprego que não o futebol.
É esse caminho heterodoxo, porém, que definiu Sarri. Foram todos aqueles times em cidadezinhas silenciosas e aldeias sonolentas —times formados por amadores entusiásticos e semiprofissionais, a que Sarri deu forma como treinador.
E foi em todos aqueles lugares espalhados pelo vale do Arno, parte da Toscana das brochuras de turismo e das fantasias românticas— quase todos a cerca de uma hora de carro de Figline Valdarno, a cidade em que ele nasceu, e de Faella, a cidade em que ele vivia —, que Sarri desenvolveu seu estilo singular como treinador, uma abordagem técnica e expansiva que o respeitado Arrigo Sacchi, antigo treinador do Milan, definiu como “imediatamente reconhecível”.
Sarri sempre disse que não “se sente” toscano, e sim que é toscano. No futebol globalizado e sem raízes, ele é fruto de onde veio, dos lugares em que viveu. A Toscana influencia suas posições políticas— a região foi por muito tempo um baluarte do Partido Comunista italiano— e também sua filosofia esportiva.
Vanni Bergamaschi, antigo colega de equipe de Sarri e o homem responsável por colocá-lo no caminho de uma carreira como treinador, define o trajeto do amigo pelos times pequenos da Toscana como um “calvário”: uma jornada lenta, tortuosa, difícil, mas que também ajudou a formá-lo. Foi lá que Sarri aprimorou um olho aguçado para detalhes, lá que ele desenvolveu seu estilo, lá que ele se tornou um treinador capaz de chegar à Série A e, agora, à Premier League.
Stia foi simplesmente o primeiro passo.
“Ele veio para cá como jogador, em 1990”, disse Bergamaschi, 60. “Era zagueiro, mas enfrentou muitas lesões. Naquele ano, o treinador não era muito bom e o clube decidiu que queria mudar. Eu era o capitão, e por isso perguntaram minha opinião. Maurizio já era meio que nosso treinador, em campo, e por isso o sugeri”.
Sarri mesmo - como costuma acontecer nesses relatos sobre origens - não parecia muito convencido. “Ele me perguntou se eu achava que devia aceitar”, Bergamaschi diz. “Eu respondi que ele pelo menos conhecia todos nós, o que lhe dava uma chance melhor do que a de um treinador vindo de fora”. Sarri, é claro, disse sim ao convite, e prosperou.
“Ele começou a assistir as partidas dos times contra quem jogaríamos”, disse Bergamaschi. “Queria saber tudo sobre todos. Estávamos falando de uma divisão das mais baixas, é bom lembrar, e nunca tínhamos visto coisa como aquela. Nenhum dos demais treinadores, mesmo os bons, tinha visão parecida com a dele”.
A imagem de Sarri na Italia é a de um sujeito excêntrico, que fuma sem parar e lê Bukowski. Ele ganhou o apelido de Mister 33, supostamente o número de jogadas ensaiadas que ensina aos jogadores, cada uma das quais batizada com o nome de um membro da comissão técnica. Sarri rejeita essa caracterização; ele diz que na realidade só tem cerca de meia dúzia de jogadas ensaiadas. Mas esse tipo de planejamento vem sendo uma das bases de seu estilo como treinador desde o começo.
“Tínhamos algumas jogadas para escanteios e faltas já então”, disse Bergamaschi.
A atenção de Sarri aos detalhes foi produtiva para sua carreira. Depois de um ano no Stia, ele foi contratado por um time maior.
“Ele passou por muitos times”, disse Bergamaschi, “mas sempre clubes pequenos”. O primeiro foi o Fallaese, sediado na cidade em que ele morava, um clube de escala ligeiramente mais grandiosa que o Stia (e que requeria menos tempo na estrada). O estádio do Fallaese tem duas arquibancadas, ante uma para o Stia; as duas caprichosamente pintadas com as cores do time. Mesmo no auge do verão, no escaldante calor de agosto, quando o campo do Stia fica trancado, há sempre alguém cuidando da grama no campo do Fallaese.
Depois, ele passou pelo Cavriglia, Antella, Valdema e Tegoleto: pequenos passos, pequenas jornadas. Só no seu quinto emprego como treinador, no Tegoleto, ele decidiu - depois de consultar a família - que se demitiria do banco e se dedicaria ao futebol em tempo integral. No Sansovino, ele enfim conquistou acesso da quinta divisão italiana, regional, para a quarta, a série D.
E em seguida, no Sangiovanese, 13 anos depois de começar como treinador, ele enfim encontrou “um projeto realmente sério”, de acordo com Francesco Baiano, um de seus comandados no time.
A presença de Baiano já era prova de que os pequenos passos haviam levado Sarri a avançar muito. Nos seus melhores anos, Baiano jogou pelo Napoli, Parma e Fiorentina. Chegou até a ser convocado para a seleção italiana, por duas vezes. Nos anos finais de sua carreira, Baiano foi contratado pelo Sangiovannese, da cidade de San Giovanni Valdarno, por decisão do presidente do clube, Arduino Casprini, que estava determinado a levar a equipe da Série C2 para a Série B, a segunda divisão italiana.
Sarri foi contratado com o mesmo objetivo. Embora ele continuasse a trabalhar sempre na mesma região, suas habilidades haviam conquistado atenção.
“O presidente conversou comigo, porque eu era um dos jogadores mais experientes”, disse Baiano. “Disse que estava trazendo um treinador das ligas inferiores, mas que era um sujeito inteligente, muito bem preparado. E foi exatamente essa a opinião que formei sobre ele. Àquela altura, eu já já havia sido treinado por diversos técnicos na Série A. E Sarri já era um grande treinador mesmo então”.
O estilo de jogo que ele desenvolveu na época não era o que Sarri tornaria famoso mais tarde.
“Não contávamos com jogadores muito técnicos”, disse Baiano. “Nós jogávamos pelas alas; tínhamos muitos jogadores rápidos. Jogávamos bastante no contra-ataque. Em termos de comparação, era um pouquinho como o Liverpool”.
Mas a abordagem era a mesma que o treinador sempre adotou, e continua adotando. Baiano e Bergamaschi usam a mesma palavra para descrever a ética de trabalho de Sarri, e o sentido em que a empregam é óbvio e lisonjeiro. Os dois o definem como “maniacale”, maníaco, em sua abordagem quanto ao futebol.
Foi isso que o levou do Stia ao Sangiovannese a todos os seus demais clubes, e de lá para a Série A e o Napoli, e em seguida o Chelsea. E todos os lugares por onde ele passou se orgulham um pouco da maneira pela qual esse filho da Toscana subiu. Em Figline Valdarno, um amigo de Sarri transformou seu bar, o Caffe Greco, em um templo à carreira do filho mais famoso da cidade.
E Sarri também se lembra de todas essas pessoas. Bergamaschi fez 60 anos em 1º de junho. Ele e Sarri não vinham mantendo muito contato nos últimos anos, mas Sarri ligou para o amigo em seu aniversário e eles passaram alguns minutos falando sobre o tempo em que trabalharam juntos em Stia, sobre o campinho ao lado da ponte, sobre aquela pequena cidade no vale onde a longa estrada termina e a jornada começou.