Futuro do pretérito
Não sei como é pra vocês, mas eu acho complicado ser brasileiro. Sinto-me como alguém que casou com uma pessoa cheia de defeitos na expectativa de mudá-la. Por isso a frase "o Brasil é o país do futuro" (livre adaptação que fizemos do título de um livro de Stefan Zweig, "Brasil, um País do Futuro") vem bem a calhar. O que eu amo não é tanto o país em que vivo, é uma projeção do que o país poderia ser se... E se e se e se e se e se e se e se e se e bota "se" aí.
Às vezes o Brasil é uma esperança, às vezes um delírio e na maior parte do tempo é apenas uma triste constatação. Impossível nos divorciarmos, contudo: mesmo que eu fosse pras ilhas Fiji eu continuaria a ser brasileiro. Foi aqui que nasci, é em português que eu falo, penso, sonho e crio os meus filhos, então só me resta agarrar-me a esta projeção e amar esta ideia vaga do que nós um dia poderíamos ser. (Não é à toa que conjugo o verbo "poder" no futuro do pretérito, esse tempo verbal banhado em melancolia).
Meu amigo Gustavo me mostrou outro dia o anúncio de um apartamento à venda com a seguinte frase: "Grande potencial para reforma!". Maneira não muito sutil que a imobiliária arrumou para informar que o imóvel estava caindo aos pedaços. "O Brasil é o país do futuro" não deixa de ter o mesmo significado: se é no futuro que nos realizaremos é porque no presente, bem, tá cheio de taco solto, fiação podre, infiltrações e trincas. No entanto, postergando as reformas, aqui vivemos. É muito esquisito ser brasileiro.
A poeta americana Elizabeth Bishop, que morou no Brasil nas décadas de 50 e 60 afirmou, sobre a cidade que talvez melhor encarne as virtudes e vicissitudes nacionais: "O Rio não é uma cidade maravilhosa; é apenas um cenário maravilhoso para uma cidade". Grande potencial para reforma! Sob nosso formoso céu, risonho e límpido, há chacinas e tráfico de drogas, desvio de dinheiro e gente morrendo nos hospitais por falta de remédios. Ser brasileiro é padecer no paraíso.
Se a gente não olhar o país enxergando as suas feridas abertas, as suas heranças nefastas, se não entendermos as implicações tremendas de termos tido um estado antes de uma nação (nação, aliás, que por séculos era em sua maioria composta por escravos traficados para morrer na lavoura) e simplesmente declararmos nosso amor à pátria amada, salve, salve, estaremos sendo ingênuos ou perversos.
Gostaria de ver como ingênua a patriotada que o ministro da Educação promoveu nesta semana, sugerindo que os alunos cantassem o hino nacional e repetissem o slogan do governo nas escolas. Infelizmente, a patriotada me soa perversa. (Deixo de lado os aspectos ilegais da proposta, como promover o slogan do governo e filmar as crianças).
Trata-se de chegar na ponta mais desamparada do país, nesses meninos e meninas que, geração após geração, o impávido colosso condena à ignorância e à pobreza e em vez de lhes oferecer uma saída, um plano, uma estratégia, um giz, que seja, para ajudá-los a se inserir na civilização, pedir-lhes um favor: que demonstrem amor à pátria amada que não os ama, que declarem apoio ao governo que ainda não fez nada para apoiá-los. É cruel.
Senhor ministro: primeiro ensine as crianças a ler e a escrever. Dê a elas uma chance de compreender o mundo, realizar seus sonhos e deixarem suas marcas. Aí eu lhe garanto que haverá aplausos ao governo e multidões cantando o hino com a mão no peito e os olhos cheios de lágrimas. Eu, sem dúvida, estaria entre elas.