Gael García Bernal está de volta ao México e aos filmes de estrada em 'Museu'
Algo em Gael García Bernal faz dele o tipo ideal para “road movies” —filmes em que os personagens se lançam por rodovias enquanto devassam seus próprios rincões existenciais. Talvez seja o ar melancólico do mexicano de 39 anos, homem mirrado que até parece um adolescente, mas que sugere pelos olhos, de um verde selvagem, quilômetros de vivência.
Não à toa, o ator tem nos longas “E Sua Mãe Também”, de Alfonso Cuarón, e “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, alguns de seus trabalhos mais emblemáticos. “Museu”, que estreia nos cinemas nesta semana, completa uma trilogia involuntária de filmes de estrada.
Na nova obra, inspirada numa história real, ele interpreta Juan, trintão que vive com os pais, incluindo o progenitor autoritário, numa localidade suburbana de classe média nos arredores da Cidade do México. Junto do amigo abobado, o sujeito arma um plano para furtar peças do Museu Nacional de Antropologia, instituição mais renomada do país.
A empreitada tem êxito, e os leva a vagar com as relíquias pelo interior do país.
“Não sabemos por que fizeram isso. Acho que foi por acreditarem que nada aconteceria a eles”, diz García Bernal à reportagem durante o Festival de Berlim, que rendeu a “Museu” o prêmio de roteiro.
Ele diz que o assunto levanta o tema da impunidade, “central se você quiser compreender o que é o México”, afirma o ator, conhecido pelo ativismo contra a violência política em seu país e contra os achaques de Trump a seus conterrâneos.
A trama do novo longa se passa em 1985, ano em que o país estava por baixo. Havia recessão econômica, o narcotráfico se infiltrara no governo e, para piorar, um terremoto havia matado 5.000 pessoas. O saque ao acervo foi a última apunhalada na autoestima de uma nação exaurida.
“Aquele museu é o espelho da nossa identidade”, diz o ator sobre a instituição cinquentenária e de traços modernistas que expõe peças arqueológicas numa extensão de quase três quilômetros. “Já houve milhares de protestos na Reforma [a avenida onde o museu está situado], mas ninguém nem sequer se atreveu a grafitá-lo.”
A maior parte da história acompanha os dois personagens caindo na estrada sem ideia do que fazer com o espólio, nem sabem para quem vendê-lo. Vagam pelas selvas de Chiapas e pelas praias de Acapulco, entre carreiras de cocaína e o colo de uma vedete de dança do ventre. Tudo extraído do caso real.
A viagem tem um quê de místico, com acenos ao xamanismo alucinógeno de Carlos Castaneda, e de antropológico, com exaltação à cosmogonia das culturas pré-hispânicas.
“Há algo de muito mexicano nesse caso verídico: tudo é arbitrário e esquisito”, diz o diretor do filme, Alonso Ruizpalacios. Em seu segundo longa, ele volta a escarafunchar a responsabilidade da elite de seu país, como no anterior “Güeros” (jargão depreciativo para os brancos mexicanos).
Mas com “Museu”, o cineasta deixa de lado certo estilo maneirista para abraçar uma multiplicidade de gêneros que tornam o novo longa mais uma dramédia do que um drama puro.
É um filme de várias camadas. Para além da culpa de classe, centrada na figura dos protagonistas, também se debate sobre o que constitui um acervo museológico. Tudo não seria, afinal, produto de um saque de povos subjugados?
O New York Times se derreteu. “Tem-se a sensação de se estar diante do novo grande diretor mexicano”, exaltou o crítico A. O. Scott, remetendo à trinca que conquistou Hollywood —Cuarón, Alejandro Gonzalez Iñárritu e Guillermo del Toro.
García Bernal foi o rosto que povoou muitos dos filmes com que o trio concretizou essa invasão cucaracha. Quando não era ele, também se escalava Diego Luna, amigo dos tempos que ambos os atores eram estrelas-mirins de telenovelas como “Vovô e Eu”, de 1992.
Nove anos depois, com “E Sua Mãe Também”, os dois já eram rapazes desabrochados vivendo estudantes lânguidos nessa produção carregada de sexo.
A partir dali, Luna fez mais concessões –sapateou no remake de “Dirty Dancing”, trabalhou com Spielberg, participou de um “Star Wars”... García Bernal optou por um caminho mais autoral, trabalhando com Almodóvar, Larraín, Babenco. Na atual era streaming, o primeiro foi parar em “Narcos”, da Netflix; o outro em “Mozart in the Jungle”, da Amazon.
“Acho que hoje dá para ser tudo, não há um caminho preestabelecido a seguir”, diz o ator de “Museu”, que teve com o parceiro uma produtora, a Canana Films, voltada a produções latinas sobre temas sociais.
Mesmo trabalhando em produções internacionais, os dois ainda vivem no país de origem. Luna tem até um bar na capital mexicana, no mesmo distrito de Coyoacán onde fica o museu de Frida Kahlo.
“O mundo caminha para uma visão maniqueísta, mas se há um lugar para mergulhar na complexidade das explicações, esse lugar é o México”, defende García Bernal. “Somos o centro, do ponto de vista dos nativos, e a periferia, segundo os ocidentais. A ambiguidade não nos incomoda.”