Ginastas dos EUA descrevem abuso físico e emocional por treinador

Os treinamentos na academia Everest Gymnastics, na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, um dos principais centros da ginástica americana, muitas vezes começavam com o treinador Qi Han lendo uma lista das meninas, algumas das quais com apenas nove anos de idade, que fariam parte do "grupo das gordas".

Essas ginastas tinham de se exercitar mais para perder peso, disseram quatro ginastas que treinaram com Han nos últimos seis anos, mas não ousavam se queixar. Tentavam não chorar; e se o fizessem dizem as ginastas, Han as chamava de estúpidas, de indignas de sua atenção. Ou jogava um sapato ou celular nelas. Ou se posicionava em uma plataforma elevada e as derrubava zangadamente da barra fixa.

Han perdia a calma quase todos os dias, mantendo suas atletas sempre tensas, imaginando quando, e como, ele explodiria, disseram as ginastas.

Os pais das atletas raramente estavam presentes. Tinham sido proibidos de assistir aos treinos.

No mês passado, Ashton Locklear, 20, membro da equipe nacional de ginástica dos Estados Unidos, disse ao The New York Times que Han havia abusado verbalmente dela, em um padrão que se agravou até o dia em que jogou um celular e a atingiu. Locklear abandonou o Everest Gymnastics alguns meses atrás.

Desde então, quatro outras ginastas da Everest apresentaram acusações semelhantes, descrevendo padrões de abuso físico e emocional que ficaram eclipsados, na modalidade, pelas preocupações quanto a abuso sexual, que vêm atraindo atenção generalizada nos últimos anos.

A crescente conscientização quanto aos abusos no esporte surgiu com a condenação de Lawrence Nassar, antigo médico da equipe nacional de ginástica americana, que foi acusado de abusos sexuais contra mais de 150 atletas. Ele foi sentenciado em janeiro a entre 40 e 175 anos de prisão.

Han não foi acusado de abuso sexual. Mas as antigas ginastas da Everest dizem que a maneira pela qual ele as tratava ia além do estilo agressivo típico de muitos treinadores esportivos, e que as consequências eram devastadoras.

Duas mães de antigas ginastas da Everest e Monica Avery, treinadora e dona de uma academia de ginástica na Carolina do Norte, também contataram o The New York Times, afirmando ter denunciado os abusos de Han à Federação de Ginástica dos Estados Unidos (USAG), anos atrás, aparentemente sem consequências para ele.

Han imediatamente desligou o telefone ao ser contatado por um repórter do The New York Times na semana passada, e não respondeu a recados de voz e mensagens de texto que o informavam sobre as acusações contra ele.

Em comunicado divulgado na sexta-feira (17), a Everest Gymnastics afirmou que "não toleramos abusos de qualquer espécie em nossas instalações".

"Se houver quaisquer acusações críveis de abuso", o comunicado afirma, "a Everest Gymnastics encoraja as partes interessadas a contar a USAG".

As quatro ginastas que denunciaram abusos -Taylor Laymon, que estudou na Universidade de Pittsburgh com uma bolsa de ginástica; Allee George, quatro vezes campeão estadual de ginástica que disse ter deixado o esporte por causa do comportamento de Han; e duas outras atletas que pediram que seus nomes não fossem revelados porque ainda competem e temem represálias - disseram que os maus tratos de Han lhes causaram cicatrizes emocionais.

"Han fazia uma espécie de lavagem cerebral que levava a pessoa a acreditar que todas as suas formas estranhas de disciplinar atletas eram normais, como quando ele forçava os ombros de uma ginasta para trás até o ponto de distendê-los e fazê-la gritar, e mesmo assim não parava", disse George, que hoje é dançarina profissional. "Quando você entra lá, é difícil sair, e isso é algo complicado de de explicar. As pessoas que ele treina se tornam bons ginastas. Mas não ficam bem mentalmente".

Han, 47, cresceu na China e quando criança foi selecionado para treinar ginástica e se tornou membro da equipe nacional chinesa da modalidade. Ele abriu a Everest Gymnastics em 2004, com sua mulher, Yiwen Chen, também antiga integrante da equipe de ginástica olímpica chinesa.

A academia deles colocou dois atletas na principal equipe nacional dos Estados Unidos.

As antigas ginastas da Everest dizem que Han as ajudava a se tornarem boas atletas por conta de seu conhecimento técnico. Elas sonhavam obter bolsas de estudo e defender universidades, ou chegar a uma olimpíada. Por isso, suportar a ira dele parecia valer a pena.

Mas hoje, reavaliando suas escolhas, estão certas de que não trabalhariam com ele se pudessem começar de novo.

"Han dizia todas aquelas coisas negativas para você, dizia que era impossível treiná-la, que você não merecia uma bolsa de estudos, e você ouvia isso tantas vezes, quando menina, que começava a acreditar que não tinha mesmo valor algum", disse Laymon, que se formou na Universidade de Pittsburgh no segundo trimestre, com diplomas em psicologia e sociologia, e agora é professora em Chicago.

"Ele fazia mais ou menos o que queria no ginásio porque ninguém olhava", ela acrescentou.

Laymon disse que refletiu por anos sobre levar a público suas acusações contra Han, para salvar meninas pequenas do mesmo sofrimento, mas que sempre teve medo de que ele encontrasse alguma maneira de retaliar.

Quando Locklear anunciou publicamente no mês passado que tinha sido molestada por Nassar, e detalhou suas acusações de abusos praticados por Han, Laymon percebeu que tinha de revelar o que sabia sobre Han. Havia muita coisa em jogo, ela disse, porque treinadores abusivos podem apavorar as meninas e forçá-las ao silêncio, tornando-as mais vulneráveis a predadores sexuais.

O estilo de Han não é incomum entre os treinadores de elite da ginástica, disse Avery, treinadora e dona da Osega Gymnastics, em Asheville, Carolina do Norte, em sociedade com seu marido Miles Avery, treinador que dirigiu a equipe olímpica americana quatro vezes e é membro do Hall da Fama da Ginástica dos Estados Unidos.

"Já vi homens e mulheres adultos testemunharem uma cena como essa em uma competição e fingirem que nada estava acontecendo", disse Monica Avery. "Aposto que essas mesmas pessoas, quando levam seus cachorros para uma tosa, se queixam muito de ver um pelinho fora do lugar; mas deixam que seus filhos sejam tratados desse jeito e nada fazem. É insano".

Monica Avery disse ter apresentado queixa formal contra Han à USAG em 2016, depois de vê-lo chutando uma ginasta que se machucou em uma competição no Texas. Ela disse que não conseguiu descobrir o que exatamente aconteceu com sua queixa.

"As pessoas estão informadas do comportamento de Han, mas escolheram não agir", disse Avery, acrescentando que "isso precisa ir adiante. Precisamos proteger a garotada".

Depois de apresentada, uma queixa como a dela seria avaliada pelo comitê de conduta da USAG e por seu comando executivo, que incluía o presidente-executivo Steve Penny. Penny renunciou em 2017 por sua omissão com relação aos casos de abuso sexual de Nassar.

Na quinta-feira (16), a USAG, federação de ginástica dos EUA, confirmou que em 2017 encaminhou uma queixa sobre Han ao Centro do Esporte Seguro dos Estados Unidos (SafeSport), encarregado de investigar acusações de abuso nos esportes olímpicos. O centro assumiu a jurisdição sobre o caso a fim de evitar um conflito de interesses para a USAG, já que Han na época treinava Locklear, integrante da equipe nacional.

Avery buscou informações sobre a queixa, com emails a um investigador do SafeSport em 2017 e no começo de 2018, mas o investigador só lhe disse que os advogados estavam considerando o que fazer quanto ao caso, de acordo com uma troca de e-mails em janeiro.

Um porta-voz da SafeSport, Dan Hill, disse que a organização não tinha obrigação de fornecer atualizações sobre quaisquer casos aos denunciantes, e que ela jamais discutia casos que estivessem sob investigação.

Locklear e uma das ginastas que não quis que seu nome fosse mencionado disseram que os abusos de Han as fizeram contemplar o suicídio. As duas dizem sofrer de distúrbios de alimentação e de problemas de autoimagem corporal surgidos quando treinavam na Everest.

"Lembro de que eu sonhava que nosso carro batesse, a caminho do treino, ou torcia para não acordar no dia seguinte", disse a ginasta que pediu anonimato. "Ou de estar no chuveiro e segurar a respiração até desmaiar, enquanto a água caía sobre mim",

"Os treinadores têm poder demais", ela acrescentou, "poder sobre bolsas de estudo universitárias e sonhos olímpicos —poder demais".

Sam Cerio, ginasta que estuda na Universidade de Austin com bolsa de estudos atlética integral, recentemente confirmou que Han a esbofeteou com tanta força que deixou a marca de sua mão no rosto dela. Ela se recusou a detalhar o incidente, acontecido em 2012, quando estava no segundo grau.

Laymon, a antiga ginasta da Universidade de Pittsburgh, disse que viu Han golpear Cerio. Ela disse que isso, e os abusos rotineiros de Han, a haviam traumatizado e a levaram abandonar a Everest.

Terri Laymon, mãe de Taylor e jurada de ginástica, disse que apresentou uma queixa disciplinar em nome de sua filha e das colegas de equipe dela - todas menores de idade - à USAG, informando à federação sobre o que Han fez com Cerio. Como jurada, ela disse que achava ser seu dever ético reportar o incidente, e encaminhou cópias de sua carta aos pais de outras ginastas da Everest, pedindo que assinassem em apoio.

Mas nenhum dos outros pais quis confirmar que Han golpeou Cerio. Han negou abusos contra Cerio ou qualquer outra ginasta, disse Terri Laymon, e ameaçou processá-la por difamação e calúnia.

Taylor Laymon disse que se recusou a depor aos investigadores da USAG porque morria de medo de que Han descobrisse. Outros pais de ginastas da Everest começaram a criticar Terri Laymon, e a divulgar declarações de apoio a Han; em um email, afirmaram que as acusações dela "só prejudicarão o futuro de nossas filhas na ginástica, se permitirmos que isso continue".

Os pais de Cerio se arrependem do que fizeram a seguir: se alinharam com Han.

Becky e Mike Cerio disseram ter decidido contar sua história agora como exemplo cautelar contra os abusos não sexuais no esporte. Eles contaram ter confrontado Han, inicialmente, e que ele disse que o contato "foi só um tapinha que não a machucou".

Em seguida, o treinador ameaçou barrar Sam da academia se os Cerio não negassem o incidente, disse Mike Cerio.

Os Cerio recordam seu raciocínio naquele momento: a temporada de recrutamento era importante para Sam, e mudar de academia seria um sinal de alerta, para os treinadores universitários. Han treinava Sam desde que ela tinha cinco anos de idade, e ela havia avançado muito com ele, e estava à beira de uma bolsa integral para uma universidade que tem um programa respeitado de ginástica olímpica. Becky Cerio era funcionária da Everest, e a família precisava do dinheiro.

O raciocínio deles era de que precisavam aguentar só mais alguns meses com o treinador, e em seguida poderiam se afastar.

Por isso assinaram a carta que Han lhes pediu para assinar, endereçada a "quem interessar possa", e contestaram a queixa de Terri Laymon. Os Cerio dizem presumir que o documento tinha sido encaminhado à USAG.

"Sentimos não ter escolha", disse Mike Cerio, afirmando que tentaram ser "vagos na terminologia da carta".

A queixa de Terri Laymon morreu ali.

"A USAG disse que não podiam fazer coisa alguma a não ser que eu tivesse testemunhado o incidente, ou que alguém mais apresentasse uma queixa", disse Terri Laymon em entrevista por telefone este mês. "Mesmo que todas as meninas que viram o incidente fossem menores, nada podia ser feito se elas não prestassem queixa. E elas tinham medo demais de Han para fazer qualquer coisa".

Outras queixas sobre Han também esbarraram nesse tipo de obstáculo.

Carrie, a mãe de Locklear, disse ter denunciado o abuso de Han contra Ashton a importantes dirigentes da USAG. Ela disse a eles que Han havia expulsado sua filha do ginásio inúmeras vezes, menosprezando-a e monitorando sua alimentação de tão perto que ela perdeu toda a vontade de comer - ou comia demais, e depois se fazia vomitar. Carrie disse que Ashton se tornou emocionalmente frágil por conta de Han,

Carrie Locklear disse que voltou a procurar a SafeSport em março, e que falou com um investigador da organização posteriormente. Mas não recebeu qualquer informação nova desde então.

Ashton Locklear, que está treinando no Texas e quer vaga na equipe olímpica dos Estados Unidos em 2020, disse esperar que mais ginastas denunciem abusos. Se não o fizerem agora, quando os dirigentes da ginástica olímpica apelam por uma mudança radical no esporte, então quando?

"As coisas ficaram como estão por tempo demais", ela disse

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