Golpe de 1964 teve quartelada e discurso que só ficou no papel
Na madrugada de 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora, atropelou a conspiração que pretendia derrubar o governo de João Goulart. Desceu sua tropa em direção ao Rio de Janeiro para tomar de assalto o Ministério da Guerra e destituir o presidente da República.
Era uma quartelada: o general Mourão estava próximo da compulsória e procurava um atalho capaz de potencializar seu papel na chefia da conspiração. Magalhães Pinto, governador de Minas, sustentou a quartelada apostando aumentar o próprio cacife político para disputar as eleições de 1965. Planejava declarar Minas em secessão, negociou em segredo o reconhecimento do governo norte-americano e pretendia oferecer aos conspiradores o terreno para uma campanha militar fulminante.
Deu tudo errado. Mourão acabou neutralizado pelas lideranças militares que, de fato, ocuparam o poder e rapidamente absorveram a quartelada em um golpe de Estado bem-sucedido.
Na base de Norfolk, na Virgínia, uma força-tarefa aguardava autorização para se movimentar em direção ao Brasil. Agrupava um porta-aviões de ataque pesado, um porta-helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros equipados com mísseis teleguiados, 110 toneladas de armas e de munição, quatro navios petroleiros bélicos carregados com 550.000 barris de combustível. Era a Operação Brother Sam, preparada secretamente em Washington com a cumplicidade de militares brasileiros para zarpar em 1º de abril e garantir apoio logístico aos golpistas.
Na madrugada de 2 de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, promoveu uma sessão conjunta secreta do Congresso Nacional e declarou vaga a presidência da República. A declaração não tinha sustentação legal. João Goulart permanecia em Porto Alegre, no pleno exercício de seus poderes.
Diante dos protestos de diversos parlamentares, inclusive Tancredo Neves, que avançou para a mesa aos gritos de “canalha’, “canalha” –e, ao que tudo indica disposto a esbofetear o presidente do Senado–, Moura Andrade não titubeou: cortou o som, desligou as luzes do Congresso e consumou o golpe. Logo depois, um Tancredo esbaforido informou aos jornalistas: “Estão entregando o Brasil a vinte anos de governos militares”.
Na tarde de 11 de abril, o Congresso Nacional se reuniu para eleger o presidente da República. Os deputados do campo das esquerdas não estavam mais lá: seus direitos políticos foram extintos por um período de dez anos. Era uma eleição indireta em que só havia um candidato: o general Humberto de Alencar Castelo Branco. O voto era nominal e de viva voz –apenas 72 deputados tiveram a coragem de se abster, entre eles, Tancredo Neves e San Tiago Dantas.
No final da tarde, o general foi eleito para completar o mandato de Jango. Em menos de uma semana depois, Castelo Branco tomou posse no plenário do Congresso Nacional. Ele jurou defender a Constituição de 1946, prometeu entregar o cargo ao seu sucessor em 1965 e garantiu que as cassações estavam encerradas.
O discurso do general disse o que todo mundo queria ouvir, mas não cumpriu nada do que prometeu. A posse de Castelo Branco era o prelúdio de uma completa mudança no sistema político sustentada por um formato francamente ditatorial –vale dizer, por um governo que não é limitado constitucionalmente.
O primeiro Ato Institucional foi redigido em segredo e promulgado oito dias após o golpe. Vinha assinado pelo autoproclamado “Comando Supremo da Revolução” –formado pelo general Costa e Silva, almirante Rademaker e brigadeiro Correia de Mello–, e trazia 11 artigos: transferia parte dos poderes do Legislativo para o Executivo, limitava o Judiciário, suspendia as garantias individuais e permitia ao presidente da República cassar mandatos, cancelar os direitos políticos do cidadão pelo prazo de dez anos e demitir funcionários públicos civis e militares.
O Ato Institucional forneceu ao general Castello Branco o instrumento de exceção que permitiu ao seu governo encarcerar milhares de pessoas, além de improvisar áreas de detenção em estádios de futebol –como o Caio Martins, em Niterói. Também transformou embarcações da Marinha Mercante e da Marinha de Guerra em prisões: os casos dos navios Raul Soares, Canopus e Custódio de Mello.
O Ato liberou a execução de manobras policial-militares de detenção em massa, com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e checagem individual, que ocorreram durante o ano de 1964, em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo e Pernambuco –cerca de 50 mil pessoas acabaram detidas nessas manobras, conhecidas como Operação Limpeza.
Era só o começo. Em 1964, a experiência democrática da Segunda República (1946-1964) foi feita em pedaços e o Brasil acabava de ingressar numa longa ditadura que durou 21 anos.
Heloisa Murgel Starling é professora de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), autora de "Os Senhores das Gerais - os Novos Inconfidentes e o Golpe de 1964" e co-autora de "Brasil, uma Biografia"