Guerra na ex-Iugoslávia moldou jogadores da nacionalista Croácia

“Somos um povo criado por uma guerra, por isso estamos na final”, dizia quase às 2h15 desta quinta (12) Zlatan Bobic, um altamente inebriado torcedor croata após a histórica semifinal de Copa na qual a seleção de seu país derrotou a Inglaterra por 2 a 1.

Para bem e para mal, ele tem razão. O selecionado da Croácia, estreante em finais de Copa e que enfrenta a França no domingo (15), é marcado pela dolorosa secessão do país da antiga Iugoslávia, em 1991.

O reflexo em campo é inevitável —o próprio técnico Zlatko Dalic atribuiu a dedicação em campo a um nacionalismo inoxidável. Pelo menos quatro jogadores vitais do time tiveram suas vidas moldadas pelo conflito, que, de resto, impactou virtualmente a todos os 23 atletas.

A estrela do elenco, o meia Luka Modric, do Real Madrid, é um deles. Quando a guerra chegou à área da Dalmácia, no fim de 1991, sua casa foi atacada por milicianos da minoria sérvia da então Croácia iugoslava. Seu avô foi morto, e a casa, incendiada.

O então garoto de seis anos passou a próxima meia década morando no Kolovare Hotel, em Zadar, como refugiado.

Mario Mandzukic, autor do gol que pôs a Croácia na inédita final, é outro. Nascido em 1986 em Slavonski Brod, o atacante da Juventus (ITA) via a vizinha Bósnia logo ao lado.

Era apenas um país, a Iugoslávia, reformada como república socialista em 1945, após a derrota das forças nazistas.

As tensões, contudo, foram sempre presentes —fascistas croatas empoderados pelo Reich durante a ocupação iniciada em 1941 mataram talvez 600 mil sérvios, e Belgrado dominou o Estado comunista subsequente na região.

Quando a carnificina na Bósnia começou em 1992, e a proximidade da fronteira deu o pretexto para o pai do jogador, Mato, mudar para a Alemanha. Estabelecidos como refugiados em Diztingen, perto de Stuttagart, os Mandzukic estimularam Mario a entrar no juniores do time local, onde seu pai, Mato, jogava.

Parecia a vida perfeita, mas em 1996 o governo alemão negou a nova extensão de permanência no país.

Mandzukic voltou à Croácia, já livre da guerra, e acabou no Dínamo Zagreb antes de ganhar a Europa.

Em 2012, quando jogava no Bayern de Munique, protagonizou polêmica ao fazer uma saudação nazista em campo —explicou depois que celebrava a absolvição de dois generais croatas acusados de crimes de guerra no Tribunal de Haia.

Outro que fugiu da guerra bósnia foi o hoje zagueiro Dejan Lovren, hoje no Liverpool, cuja família emigrou para a Alemanha em 1991, quando ele tinha dois anos. Também com problemas para manter o status de refugiados, os Lovren voltaram para a Croácia em 1998. Croatas étnicos, eles eram originalmente da cidade bósnia de Zenica.

Vedran Corluka, meia da seleção, é um caso semelhante. Croata, atleta hoje do Lokomotiv Moscou, ele nasceu e morou até os seis anos em Modran, na Bósnia.

 

 

Com o acirramento da guerra, em 1992, mudou para Zagreb, onde acabou por iniciar sua carreira no futebol.

De tempos em tempos, os jogadores croatas falam sobre sua experiência. Lovren, por exemplo, defendeu o acolhimento de refugiados da guerra civil síria: “Eles merecem a chance que meus pais tiveram”, disse em 2016.

Tanto ele quanto Modric passaram por maus bocados de outra natureza, acusados de encobrir um esquema de fraude em transferência de um ex-cartola do país. Modric já responde a processo e virou vilão na Croácia, podendo pegar até cinco anos de cadeia, e Lovren é investigado.

Para o treinador Dalic, o nacionalismo é a cola que une o time. “É o nosso combustível”, afirmou, rejeitando discutir “questões políticas”.

Elas são, queira ou não Dalic, várias. Se o time de 2018 não tem jogadores que lutaram na guerra, como Petar Krpan na equipe que chegou ao épico terceiro lugar 20 anos na Copa disputada na França, a política carrega o ambiente croata.

Muito passa pelo dia 13 de maio de 1990, quando o croata Dínamo de Zagreb recebeu o sérvio Estrela Vermelha, de Belgrado, num jogo do campeonato nacional iugoslavo que acabou em pancadaria.

O caso é por muitos considerada o começo da guerra da independência da Croácia.

“Meu pai estava lá, posso dizer que a causa estava ganha”, diz o torcedor Bobic, 23. A seleção nacional nasceu cinco meses depois, antes da independência de 1991.

Em campo, o mais aguerrido nacionalista croata era Zvonimir Boban. Oito anos depois, ele seria o capitão do time derrotado pela França na semifinal do Mundial.

Nesta Copa da Rússia, o caldo engrossa porque os anfitriões são aliados políticos dos maiores inimigos dos croatas, os sérvios. Assim, quando Lovren celebra vitória cantarolando música associada ao grupo fascista que governou a Croácia sob a benção de Adolf Hitler, a “apolítica” Fifa fica pressionada.

O episódio passou em branco. Já o zagueiro Domagoj Vida celebrar a derrota dos russos nas quartas, pelos pés croatas, cantando “Glória à Ucrânia” (referência à rival de Moscou) e “Queime, Belgrado!” mereceu uma advertência.

Do outro lado, a Sérvia também acabou multada por cânticos militaristas de sua torcida. E Vida não pôde tocar na bola na semifinal sem levar estrondosa vaia dos russos.

“É complicado cobrar racionalidade num ambiente emocional como o de um estádio. Mas a Croácia deveria ter em mente que a postura ultranacionalista num país como a Rússia tem consequências”, disse o analista político Konstantin Frolov.

 

Antiga Iugoslávia era formada por seis países, e se desintegrou nos anos 1990

1918

Formação do Reino da Iugoslávia

1941

Ocupação nazista; Croácia é governada por fascistas que promovem genocídio

1945

Após resistência comunista sérvia e o fim da guerra, unificação em um Estado socialista

1990

Com o fim do comunismo, acaba o regime de partido único e começa luta contra domínio sérvio

1991

Eslovênia se separa após curta guerra

1991

Macedônia se declara independente, sem guerra

1991

Croácia declara independência, em guerra que foi até 1995, coalhada de massacres de lado a lado

1992

Começa a guerra na Bósnia, a mais violenta, com fracasso de mediação da ONU e limpeza étnica de todos os lados

1995

Fim da guerra da Bósnia, já independente, mas com subdivisão sérvia e muçulmano-croata

1999

Província albanesa de Kosovo se rebela contra sérvios, e recebe apoio da Otan, virando um protetorado da ONU

2000

Fim do governo do homem-forte da Sérvia-Montenegro, Slobodan Milosevic

2006

Montenegro declara independência

2008

Kosovo declara independência

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