Herói brasileiro O Doutrinador mata corruptos e ecoa indignação do país
Ele é contra tudo isso que está aí. Diz que policial deve atirar para matar, que o STF está vendido e quer acabar com a “roubalheira dos políticos desgraçados”. Pensa que tem que mudar isso aí.
Ele é o Doutrinador, super-herói brasileiro que luta de maneira feroz contra a corrupção. Chega ao cinema quatro dias depois desses mesmos anseios de justiçamento terem levado Bolsonaro à Presidência. O vingador com máscara à prova de gás também dará as caras em série da TV a cabo no ano que vem.
Faz dez anos que o vigilante se alimenta de uma indignação difusa. “Eu estava inconformado com algum escândalo político do dia. Aí acendeu aquela fagulha e eu quis botar tudo no papel”, conta o designer carioca Luciano Cunha.
Em tirinhas nas redes sociais, ele botou seu herói para sair à caça da então presidente Dilma Rousseff e do senador Renan Calheiros. Com as manifestações de junho de 2013, seu vigilante “surfou aquela onda toda de revolta e explodiu”, segundo o quadrinista.
Com o filme “O Doutrinador”, polpuda produção de R$ 8 milhões, o centro de São Paulo ganha clima de Gotham City, com arranha-céus iluminados por néon azul e roxo.
É por ali que ronda o alter ego de Miguel Montessanti (Kiko Pissolato). De dia, ele é o policial exemplar de uma tal Divisão Armada Especial; de noite, ele se disfarça para exterminar gente corrupta.
Alguns ele golpeia até desfigurar, outros ele atira de janelas. Prefeito, deputado, governador, ministra do Supremo... Todos são alvo de uma violência que é construída para criar catarse em tempos de aversão à política tradicional.
A fúria do Doutrinador é justificada na trama pela morte de sua filha após padecer na maca de um hospital público vítima de uma bala perdida. O sujeito clama que o que a matou não foi o tiro, nunca esclarecido na história, mas o precário atendimento hospitalar.
Com o mesmo espírito das frases feitas que estamparam os cartazes dos protestos de junho, ele parte para se vingar, pisoteando todo o tipo de instituição no caminho —polícia, Justiça, Congresso Nacional.
“Ele nasce desse desejo que as pessoas realmente têm de acabar com a corrupção. Mas, pela forma como age, está mais para anti-herói do que super-herói”, diz o diretor do filme, Gustavo Bonafé. “Podem achar absurdo o que ele faz, mas é só entretenimento.”
O cineasta não vê nos objetivos do personagem uma ode ao presidente recém-eleito ou a outras figuras, como Sergio Moro, que inspiram sanha semelhante de fazer justiça. “O Doutrinador não tem discurso. Só age por instinto.”
O criador da HQ também acha que é só coincidência. “Quando escrevemos o roteiro, dois anos atrás, jamais imaginaríamos que Bolsonaro seria eleito”, afirma Cunha.
As eleições acabaram interferindo. Previsto para estrear em setembro, o longa aguardou o fim do pleito. “Se lançássemos naquele período tumultuado, poderiam dizer que estaríamos querendo tomar algum partido”, diz o diretor.
De qualquer maneira, o justiceiro brasileiro pode dar brecha a quem vê na figura dos super-heróis um aceno ao extremismo político. Não são poucos os que enxergam fascismo nessas figuras, hoje recordistas de bilheteria nos cinemas.
Em texto publicado na Ilustríssima em abril, Rogério de Campos, especialista no tema, enumera detratores dos vigilantes fantasiados —do folclorista Gershon Legman, que via no Super-Homem uma apologia “à moralidade do uso da força como nenhum nazista poderia sonhar”, ao psiquiatra Fredric Wertham, que achava que gibis de herói ensinavam fascismo às crianças.
O criador do Doutrinador conta que sua obra foi recusada por 11 editoras antes de desaguar nas redes sociais. “Achavam polêmica demais.”
A versão cinematográfica do herói segue a mesma doutrina que gerou “Tropa de Elite”, “Polícia Federal” e o ainda não lançado “Cidade do Medo”.
São longas de ação que tomam o Brasil por um projeto falido de país, engolido por uma estrutura corrompida definida como “o sistema” e que só encontra salvação num herói de verniz autoritário, que atropela as instituições.
O quadrinista Luciano Cunha crê ser “competição desleal” comparar seu filme com “a história maluca do Brasil”. “E quem iria imaginar que essa eleição teria facada e líder preso? Nenhum roteirista conseguiria ser tão criativo.”