Hispânica, 25% da Flórida foi 'dona' do estado há 200 anos
“Se você andar por aí e der sorte, quem sabe até ouve alguém falando inglês”, brinca a vendedora Lisseth, 37.
Yes, ela ama os Estados Unidos, país que, após deixar sua combalida Venezuela natal, há quatro anos, deu-lhe o bacon no café da manhã, o marido (“John, mais americano, impossível”) e guarida.
Pero calma lá: nada de publicar o sobrenome, ela pede. A recusa vem da falta de status legal na nova casa.
Hoje, um em cada quatro moradores da Flórida são imigrantes de países de língua espanhola ou seus descendentes. O número fermentou: há uma década, eram um em cada seis na população total.
O que muitos deles não desconfiavam, Lisseth inclusa, é que 200 anos atrás a sua origem hispânica constituía o “status legal” por aquelas bandas, e eram os americanos lá assentados os irregulares.
Isso até a Flórida ser vendida pela coroa espanhola aos ainda imberbes Estados Unidos, uma nação com 43 anos de independência nas costas, no dia 22 de fevereiro de 1819.
Uma negociação relativamente amistosa se comparada a anexações territoriais mais turbulentas —como a guerra estourada após a incorporação do Texas, em 1845, entre México (que via a região independente como um estado mexicano rebelde) e EUA (que o reivindicou para si).
Tudo se deu no Tratado Adams–Onís, que envolveu John Quincy Adams, à época secretário de Estado e dali a alguns anos o sexto presidente americano, e Luis de Onís y González-Vara, enviado do então rei espanhol, Fernando 7º.
O que se pagou foi uma bagatela mesmo em valores corrigidos, como explica à Folha Jack Davis, professor de história da Universidade da Flórida: “O Departamento de Estatísticas do Trabalho diz que a dívida espanhola de US$ 5 milhões que os EUA perdoaram em troca da Flórida hoje valeriam US$ 99 milhões”.
Isso, contudo, “não leva em conta a infraestrutura que surgiu desde então”, afirma Davis. Hoje beira a US$ 1 trilhão o PIB do terceiro estado americano com mais hispânicos: 5,4 milhões, um colosso perto dos estimados 300 mil brasileiros vivendo lá —só perde para os 11 milhões do Texas e os 15 milhões da Califórnia.
Com 18% da população, o grupo de raiz espanhola é a maior minoria dos EUA (negros, por exemplo, representam 13,5%). Se um país à parte fosse, formaria o segundo maior bloco hispânico do mundo. Só o México ganharia.
Luis Alicea, 43, trabalha na secretaria de Negócios Multiculturais de Orlando e diz que é possível perceber o aumento da população hispânica "aonde quer que vá”. “As pessoas falam espanhol em supermercados, shoppings e parques. Daí muitas corporações americanas estão recrutando funcionários bilíngues, inclusive para a comunidade brasileira”, conta.
Flôrida
A Flórida, a princípio, pronunciava-se Flôrida, da palavra espanhola “florido”, que tem o mesmo significado floral em português. Nomes com sotaque espanhol pululam em todo o estado, até mesmo na Mar-a-Lago, diz, com uma nota de ironia, o diretor do Instituto de História da Universidade de Miami, Gregory Bush.
A graça está no fato de que esse é justo o resort de luxo que o presidente dos EUA, Donald Trump, tem em Palm Beach, por ele chamado de sua “Casa Branca no inverno” (a Flórida é mais quentinha que Washington).
Trump é, afinal, um presidente famoso por suas posições linha-dura contra imigrantes, ainda que no passado tenha empregado um punhado deles em Mar-a-Lago.
A Espanha resistiu o quanto pode a entregar aquele pedaço de terra no outro lado do mundo. Mas aquele começo do século 19 estava puxado.
O império espanhol acabara de sair de uma guerra contra Napoleão Bonaparte —e não sem sequelas socioeconômicas.
Em suas colônias na América Latina, cá e lá começaram a se ouvir gritos por independência. Àquela altura não tinha muito dinheiro para torrar com tropas e ocupação da Flórida, já em boa parte invadida por colonos americanos.
E verdade seja dita: o quinhão territorial “tinha governantes espanhóis bem distantes”, diz o professor Bush. “Era amplamente ignorado, considerado em grande parte inútil do ponto de vista econômico.”
Se no início era uma colônia espanhola, entre 1763 e 1783 a região ficou sob jugo da coroa britânica. Acabou transferida de volta ao rei Fernando 7º finda a Revolução Americana, e depois incorporada à nova nação independente.
Essa parte da história nem localmente é bem conhecida. “É seguro dizer que a maioria dos floridenses não são familiarizados com ela”, diz o professor Davis. A memória hispânica vem de gerações mais recentes, como os cubanos que chegaram aos borbotões, fugidos do regime de Fidel Castro.
David Vargas, 32, é filho de nativos da ilha e mora em Hialeah, a cidade “mais etnicamente homogênea dos EUA”, segundo uma pesquisa do site financeiro WalletHub, que analisou 501 municípios americanos.
Boa sorte ao procurar um branco em Hialeah. Por lá, 95% da população prefere “gracias” a “thank you”.
A geração de David abraça o “sueño americano”, mas “a mais velha, nossos avós, viveu a pior parte da adaptação, então a versão deles para a história é sempre um milkshake de emoções”, conta à Folha o idealizador de uma websérie sobre “uma millennial cubana que convence seu marido americano a trocar Chicago por Miami e morar com sua louca família cubana”.
Lisseth, aquela que prefere não dar o sobrenone, até gostaria de ter sua louca família venezuelana por perto.
Pais, dois irmãos e seu golden retrivier Hugo (que não tem a ver com Chávez, diz) ficaram para trás quando ela decidiu viver ilegalmente nos EUA. Veio com a irmã.
Ela se encanta ao saber que há dois séculos os hispânicos é que mandavam no pedaço. E lança a proposta: “Os americanos bem que podiam agora comprar a Venezuela, né?”.