Hit do rap nordestino propõe confronto com preconceitos do sul do país
Durante um show recente em São Paulo, Diomedes Chinaski cantou o hit “Sulicídio” para uma casa abarrotada. Na letra, ele falava em “matar a sangue frio” alguns MCs do eixo Rio-São Paulo. “Um amigo [nordestino] me disse: ‘Às vezes eu fico constrangido. Como você canta essas coisas estando aqui?’”, ri o rapper pernambucano.
Lançada há dois anos, “Sulicídio” é resultado de uma parceria entre Chinaski e o baiano Baco Exu do Blues a fim de criticar a visão preconceituosa do hip-hop do Sudeste em relação ao do Nordeste.
Resgatando a cultura da “diss track” (faixa provocação), eles xingam nominalmente rappers do eixo para deixar clara a mensagem: a arte brasileira de rimar por cima de batidas não está limitada a um ou dois sotaques.
A música causou desconforto entre MCs do Rio de Janeiro e de São Paulo, a ponto de render diversas brigas e canções em resposta. Mas o impacto de “Sulicídio”, que tem hoje quase 8 milhões de visualizações no YouTube, é inegavelmente positivo para os seus autores.
Baco Exu do Blues foi destaque no último Prêmio Multishow de Música Brasileira, vencendo duas categorias. Diomedes Chinaski despontou na cena. Nomes até então desconhecidos, como Matuê, do Ceará, e Luiz Lins, de Pernambuco, já colecionam milhões de acessos. Isso sem falar na abertura do circuito de shows.
Hoje, rappers do Nordeste lotam casas em São Paulo e no Rio, e não só o inverso.
Para Don L, integrante do grupo seminal de Fortaleza, o Costa a Costa, “Sulicídio” abriu caminhos em todo o Brasil. Ele cita como exemplo a ascensão de Djonga em Belo Horizonte. “De repente, todo mundo foi questionado. ‘Sulicídio’ acabou com carreiras, gerou a percepção de que tem gente fazendo melhor [em outros lugares].”
Mas “Sulicídio” é só a ponta do iceberg. Surgido nos Estados Unidos, o hip-hop se estabeleceu em São Paulo entre os anos 1980 e 1990 e não demorou até que os Racionais MCs ganhassem as periferias do país. “A questão da negritude que eles levaram para a favela teve o potencial de umas cinco lideranças negras americanas”, analisa Don L.
No Nordeste, o gênero se desenvolveu nos anos 2000 com o viés politizado do Sudeste. Don L recorda uma figura local, o Preto Zezé, que distribuía CDs dos Racionais em Fortaleza. “Fui encontrá-lo na Febem, dando aula com livro do Malcolm X. Era ali que acontecia o hip-hop.”
O que mudou tudo foi o maior acesso à tecnologia nas regiões mais pobres, além dos DVDs piratas com clipes americanos. “Quando ouvi rap nacional, pensei: quero ser revolucionário. Quando ouvi rap gringo, pensei: quero ser rico”, conta Chinaski.
Quando se tenta medir a importância do Velvet Underground no rock, a máxima usada é “vendeu pouco, mas todo mundo que ouviu montou uma banda”. O mesmo pode ser dito de “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência” de Costa a Costa, mixtape lançada pelo grupo de Don L há pouco mais de uma década.
O projeto foi revolucionário, com samples de música brasileira, flertes com ritmos latinos e uma quebra do discurso ortodoxo do rap consciente.
As letras também eram mais autobiográficas, abrindo espaço para a ostentação, histórias de tráfico e gangues. “Eu falava do crime menos querendo julgar o que era certo e mais contando o que acontecia”, explica o cearense, que calcula ter vendido 10 mil cópias caseiras desse trabalho.
“Começamos a fazer CD pirata e subir os becos tocando, com o porta-malas do Opala aberto. Os caras balançavam a cabeça, começamos a ver que aquilo funcionava. Éramos os malucos: rappers e traficantes. Tudo que a gente falava tinha que ser verdade, senão estávamos ferrados.”
Se o hip-hop é “a CNN do gueto”, segundo a famosa definição de Chuck D, do Public Enemy, o rap do Costa a Costa era o jornal do “gueto do gueto”.
“Nas comunidades, a violência está no sangue. Você é violentado toda hora. Sua casa está desestabilizada e você passa o dia na rua. Como consegue algum status? Alguns conseguem no grafite, outros no crime. E outros sendo ‘o mais doido’, que ‘pega gente’ na mão, dá tiro”, afirma Don L. “A cultura de gangue é o cara virar lenda.”
Até na indumentária o Costa a Costa foi influente, substituindo as roupas largas, jaquetas e toucas por óculos escuros e bandanas, mais confortáveis no calor. O grupo chegou a dar entrevista para Regina Casé na TV Globo e a receber de Caetano Veloso um Prêmio Hutúz, um dos troféus mais cobiçados do rap.
Chinaski era adolescente em Paulista, cidade da região metropolitana do Recife, quando ouviu “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência”. “Aqui se fazia um som com o qual os moleques da favela não se identificavam”, diz. “[O Costa a Costa] Foi muito mais importante que todos os outros grupos. O rap [antes] era só sermão na orelha e tinha carência de algo com o nosso o sotaque. A gente falava normal, mas quando ia cantar virava paulista.”
Ele também passou a rimar sobre a realidade local, no caso, a cultura de ‘galeragem’ pernambucana. “Quando gravamos música dizendo que íamos pichar a delegacia da praça, aí os moleques começaram a botar a faixa no celular, a espalhar.”
O legado de “Sulicídio” e do Costa a Costa já é difícil de estimar. Baco Exu do Blues goza de prestígio em círculos da MPB, os últimos projetos de Don L e Diomedes Chinaski são bem vistos pela crítica e outros nomes, como o baiano Vandal, vêm ganhando espaço. Até Nego Gallo, outro ex-integrante do Costa a Costa, tem o primeiro disco solo engatilhado.
“É ter que fazer o impossível para poder dizer o indizível”, Don L canta no single “Camisa 10”, falando sobre a própria trajetória. Há mais de uma década no jogo do rap, o cearense sabe que, apesar do momento de visibilidade, o sucesso do nordestino ainda é exceção. Mais exatamente, nas palavras dele: “1% do 1% do 1% vem de onde eu venho para dizer o que eu digo”.