'Incêndios' combina drama e tragédia em história marcada por segredos e violência
O filme “Incêndios”, do diretor canadense Denis Villeneuve, acompanha a história e o destino da libanesa Nawal e de seus dois filhos gêmeos, Jeanne e Simon. Em seu testamento, a mãe deixa duas cartas, que eles devem entregar ao pai, que acreditavam estar morto, e ao irmão, cuja existência nem sequer conheciam. Os dois partem, então, do Québec em busca dos familiares e da misteriosa vida da mãe no Oriente Médio.
Inspirado na peça do libanês Wajdi Mouawad e indicado à estatueta de melhor filme estrangeiro no Oscar de 2011, “o filme tem cara de uma experiência traumática, saímos mudos ao final”, como disse a psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar e colunista da Folha, em debate que seguiu à sessão do longa na última quarta-feira (22), na Cinemateca Brasileira, como parte do Módulo 3 do Ciclo de Cinema e Psicanálise.
Villeneuve afirmou que “Incêndios” retrata uma tragédia grega. Na opinião da psicanalista e professora titular do Instituto de Psicologia da USP, Eva Maria Migliavacca, que também participou do debate, porém, trata-se a rigor de um drama. Pois a tragédia afeta a todos e o filme se circunscreve a um grupo familiar e não influencia o contexto, apesar de ser determinado por ele.
Migliavacca reconhece, contudo, que o filme contém elementos de tragédia e estabelece paralelos evidentes com “Édipo Rei”. Assim como na peça de Sófocles, o longa retrata “a busca de uma verdade oculta, embora não se conheça o desfecho”. Ele transita então entre o drama e a tragédia, entre uma situação de guerra e de paz. “Na guerra as coisas acontecem, e na paz elas podem ser descobertas”.
Com efeito, a trama tem na violência um de seus temas mais centrais. A primeira forma pela qual ela se manifesta, segundo Iaconelli, é como “estratégia de sobrevivência”. O olhar de ódio, tristeza e revolta do ator mirim na primeira cena seria expressão disso, assim como aquele de Nawal depois de testemunhar o massacre de um grupo de muçulmanos por parte de uma milícia cristã mais adiante.
“Como no Líbano da guerra civil, em qualquer país onde não há infância possível, a única coisa que as crianças têm para devolver à sociedade é ódio, pois não receberam nada de bom”, afirmou a colunista da Folha. Assim como no Brasil, marcado por uma guerra civil nas periferias, os jovens são reconhecidos pelo outro apenas pela sua expertise na violência e “só são alguém no crime organizado”.
O filme ainda ajudaria a pensar uma relação importante nos dias de hoje e que se estabelece entre violência e barbárie. Diversas cenas mostram pessoas que podem ser eliminadas como se fossem qualquer coisa, como se não tivessem direito à vida, “nem sequer direito a uma última frase”. “Quando criamos categorias de sujeitos que não são humanos, que estão no lugar da vida nua, do estrangeiro e do outro que pode ser eliminado, entramos na barbárie”, disse Iaconelli.
A religião, mobilizada de forma central no contexto retratado, seria apenas, na opinião de Migliavacca, uma bandeira para disfarçar condições das relações humanas. Segundo ela, as guerras manifestam a ameaça que um estranho pode representar à estabilidade da ordem de um grupo. “Incêndios” mostraria então como na guerra “quem mais sofre são aqueles que não têm voz, não somente as mulheres, as crianças e os idosos, mas também o soldado, pois se não morre, é destruído moralmente”.
Aproveitando que o mote do Módulo 3 do Ciclo tem como mote o mal-estar na civilização e o poder, Migliavacca sugeriu uma distinção, a partir do longa, entre os conceitos de força e poder. Em uma trajetória que inclui passagens de caráter transgressor, lutas coletivas inglórias e uma penosa luta individual, Nawal teria perdido quase tudo, menos sua força interior. Apesar de não ser poderosa, ela seria respeitada por ter se mantido forte, por nunca ter se dobrado, como diz um personagem. “Ela não chora, ela canta. É conhecida como a mulher que canta”.
Segundo a psicanalista, poder e força podem coexistir num mesmo grupo e indivíduo, mas não necessariamente. Um exemplo seria o político que se esquece que o poder é temporário, tem malfeitos desvendados e desmorona emocionalmente. “Por outro lado, muitos fortes não teriam sucumbido à opressão da ditadura”.
O risco de condenação absoluta desses sujeitos, marcados por uma experiência de pura intensidade e por situações tão insólitas cuja reação só pode ser o silêncio, porém, encontra na carta —cujo termo em francês “lettre” equivale a palavra— a única saída possível. Segundo Iaconelli, a palavra sempre chega e, ao usar a linguagem a seu favor, Nawal pode ter uma lápide colocada em seu túmulo e ser finalmente reconhecida como sujeito no espaço público.
As cartas demonstram então que a protagonista conseguiu, apesar de uma série de obstáculos, preservar o amor. Para Migliavacca, a última cena do filme é uma demonstração de que “somos capazes e necessitados de compaixão, o fator que talvez tenha permitido a sobrevivência da espécie humana até hoje”.
O Ciclo de Cinema e Psicanálise é realizado pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pela Sociedade Amigos da Cinemateca, com o apoio da Folha. O próximo encontro acontecerá na próxima quarta-feira (29), às 19h, com a exibição de "Junho: O Mês que abalou o Brasil", na Cinemateca (largo Senador Raul Cardoso, 207, Vila Clementino, São Paulo).
É possível retirar os ingressos gratuitamente no local a partir das 18h.