Inquérito revela que príncipe Charles exerceu influência indevidas para proteger clérigo anglicano
O príncipe Charles usou sua influência indevidamente para proteger Peter Ball, ex-bispo anglicano e velho amigo dele, depois de o clérigo ter admitido que abusou sexualmente de um jovem noviço. A conclusão é de um inquérito independente e foi anunciada esta semana.
Em uma crítica incomumente áspera ao futuro rei, o inquérito concluiu que “as ações do príncipe de Gales foram erradas”.
“Ele deveria haver reconhecido o efeito que seu aparente apoio a Peter Ball poderia ter sobre as decisões tomadas no palácio de Lambeth”, a sede da Igreja Anglicana, concluiu o Inquérito Independente sobre Abuso Sexual Infantil, comandado pelo professor de assistência social Alexis Jay.
Charles expressou “profundo pesar pessoal” por ter sido enganado por Ball e disse que não tinha sabia que qualquer abuso tinha ocorrido.
“Como Charles deixou claro em seu depoimento voluntário ao inquérito, em momento algum ele exerceu qualquer influência sobre as ações da igreja ou de qualquer outra autoridade relevante”, disse à agência de notícias Press Association um porta-voz de Clarence House, a residência oficial do príncipe.
O relatório do inquérito traz detalhes sobre uma rede poderosa de “old boys” (ex-alunos de escolas de elite britânicas só para rapazes, que continuam a manter vínculos profissionais e políticos depois de se formarem) que se mobilizou para defender Ball. O clérigo foi acusado de abuso sexual pela primeira vez em 1969, mas continuou a subir na hierarquia da igreja durante duas décadas.
O inquérito descobriu que quando Ball foi nomeado bispo de Gloucester, em 1991, foi avisado que “não deve haver mais rapazes”. Em 1993 Ball admitiu ter cometido um ato de indecência grave com um rapaz de 19 anos e aceitou uma advertência da polícia, o que lhe permitiu evitar um julgamento criminal. Foi forçado a renunciar do cargo de bispo, mas dois anos mais tarde voltou a exercer o ministério.
Foi apenas em 2015, quando a investigação foi retomada, que Ball se confessou culpado de agressão indecente e erro de conduta no exercício de cargo público, ligados ao abuso sexual de 16 rapazes e homens que o procuraram em busca de orientação espiritual. Ele foi sentenciado a 32 meses de prisão, mas recebeu liberdade condicional depois de cumprir metade da sentença.
O relatório do inquérito apresenta uma espécie de anatomia da influência social na estrutura de poder britânica.
Peter Ball, 87 anos, que estudou no Lancing College e na universidade Cambridge, era amigo dos diretores de muitos dos colégios internos particulares mais prestigiosos do país e pertencia a um clube gastronômico privado chamado “Nobody’s Friends” que se reunia duas vezes por ano na casa do arcebispo de Canterbury.
Ele era amigo do arcebispo, George Carey, e do lorde Lloyd of Berwick, um juiz de tribunal de recursos. Mas o mais poderoso de seus amigos era Charles, o príncipe de Gales. Ball viveu em uma das propriedades do príncipe desde o final dos anos 1990, depois de ter sido obrigado a renunciar a seu cargo, até 2011. Ele pregou um sermão no funeral do sogro do príncipe, Bruce Shand.
Wayne Murdock, detetive da polícia encarregado da investigação em 1993, previu desde o início que os amigos poderosos do suspeito tentariam sufocá-la.
“Os tambores da selva vão começar a tocar e os telefonemas vão começar a ser feitos”, ele disse, segundo o relatório.
O relatório cita correspondências que sugerem que, depois de Ball ter sido obrigado a renunciar como bispo de Gloucester, Charles fez lobby para que ele pudesse voltar a exercer o ministério.
O inquérito concluiu que os apoiadores de Ball não acobertaram crimes conscientemente, mas deixaram de levar em conta a possibilidade de que uma pessoa que conheciam e de quem gostavam pudesse também ter cometido abuso sexual.
“É provável que eles acreditassem sinceramente na inocência de Peter Ball”, diz o inquérito. “Essas pessoas não podiam conceber a possibilidade de alguém como Peter Ball ser culpado de um comportamento tão ofensivo.” Eles “pensaram saber mais do que sabiam, sendo que na realidade ignoravam completamente a extensão das acusações feitas a Peter Ball.”
As vítimas de Ball, muitas das quais eram rapazes adolescentes, descreveram que abordaram o clérigo para pedir orientação sexual e que ele os mandou tirar toda a roupa, tomar banhos frios de chuveiro enquanto ele assistia, masturbar Ball, submeter-se a espancamentos ou dormir nus com ele. Um clérigo que pedira a Ball que recomendasse sua ordenação disse que se negou a tirar a roupa quando Ball pediu que o fizesse. Ball subsequentemente retirou sua recomendação de ordenação. O clérigo teve seu pedido de ordenação rejeitado e ouviu que “havia uma grande marca negra contra ele na Igreja Anglicana”.
Ball acabou sendo detido devido a uma queixa prestada por Neil Todd, que começou a visitar Ball quando tinha 17 anos e sentiu medo quando o bispo começou a falar em espancar ou açoitá-lo como parte da prática religiosa deles. Todd tentou o suicídio aos 19 anos e mais tarde prestou queixa à polícia do comportamento de Ball.
Todd se suicidou em 2012, dias antes da reabertura oficial do processo contra o clérigo.
Lorde Carey, o ex-arcebispo anglicano, disse desde então que ele e outros líderes da igreja minimizaram a gravidade do comportamento de Ball porque não envolvera penetração.
“Acho que todos nós na época estávamos dizendo ‘bem, ele não estuprou ninguém, não houve sexo penetrativo’”, disse o ex-arcebispo.
Carey reconheceu que atribuiu mais importância ao depoimento de Ball que ao de Todd.
“Realmente acreditei em Ball por muito tempo, porque quem mais estava prestando queixa contra ele? Eu não conhecia essa gente”, ele disse ao inquérito.
Tradução de Clara Allain